Cinema

Pelé abolicionista em filme obscuro

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Em 15 de janeiro de 1971, uma reportagem da revista Placar discutia se Pelé (1940-2022), pouco depois da conquista do tricampeonato, era capaz de vender qualquer tipo de produto. Tinha começado a rolar uma certa pelémania na publicidade, com o jogador aparecendo direto na TV e tendo vários produtos associados a seu nome. E o assunto ocupou duas páginas da publicação, com direito a uma crônica que reproduzia um dia de trabalho do jogador e concluía que “no rádio, no jornal, na TV, Pelé passa 24 horas por dia vendendo”.

Por publicidade nos anos 1970, entenda-se: zero de diversidade e perspectivas bastante preconceituosas sobre diversos assuntos. De qualquer jeito, o problema do racismo foi citado (pelo professor e publicitário Décio Pignatari). Nem todos os entrevistados concordaram que Pelé venderia qualquer coisa: Roberto Duailibi (da agência DPZ) dizia que o uso de famosos em campanhas já estava desgastado, e afirmava que não houve planejamento da carreira de Pelé para que ele pudesse ser um ídolo cuja imagem vende qualquer coisa. O jornalista Celso Japiassu, por sua vez, era um dos mais animados: para ele, o jogador só não podia anunciar sutiã. O resto valia.

Por acaso, naquele ano de 1971, Pelé já vinha se encontrando com uma equipe de cinema em São Paulo para realizar mais um crossover entre futebol e arte – só que um cruzamento que, ao contrário de muita coisa que ele fez na vida, ficou bastante obscuro. Foi o filme A marcha, dirigido por Oswaldo Sampaio, cineasta veterano da empresa Vera Cruz, e que havia trabalhado como editor de livros ao lado de Monteiro Lobato. Uma curiosidade é que Pelé interpreta no filme – que se passa na época da abolição – um escravo alforriado, Chico Bondade, que liberta outros escravos e inicia uma rebelião (a “marcha” do nome do filme).

O elenco de A marcha tem de Paulo Goulart e Nicette Bruno a ninguém menos que Goulart de Andrade (aquele mesmo, do “vem comigo”). O filme demorou para ser terminado e só chegou aos cinemas em 27 de julho de 1972, em meio a uma briga da família de Afonso Schmidt, autor do livro que deu origem ao filme, por direitos autorais. Por causa disso, Sampaio e Paulo Goulart (que era produtor do filme) teriam pagado à família do escritor “o mais alto valor em direitos autorais até então registrado no cinema brasileiro”.

Pelé, que como ator já havia feito até uma novela mais obscura ainda (já falamos disso aqui mesmo no Pop Fantasma) teve que se preparar bastante para fazer o filme. Começou até a fazer capoeira e descobriu o judô. Num outro papo publicado pela Placar em 18 de novembro de 1971, o preparador físico do Santos, Julio Mazzei, botava no filme a culpa da queda de produção de Pelé, que tinha ficado sem fazer gols durante um tempo.

Já o jogador-ator reclamava de ter se despedido da seleção brasileira, mas mesmo assim estar rolando uma discussão enorme sobre se ele seria obrigado a ficar ou não. Pelé reclamava até de estar sendo prejudicado psicologicamente, e de ter ficado sem fazer gols por causa disso. Nem mesmo o rei conseguia ser tão dono de seu destino assim, ao que parecia.

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