Crítica

Ouvimos: Peter Gabriel, “i/o”

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  • i/o é o décimo álbum de estúdio de Peter Gabriel. É o primeiro disco dele desde o álbum de regravações orquestrais New blood (2011) e o primeiro de inéditas desde Up (2002).
  • O repertório do álbum foi selecionado em meio a mais de 150 canções inéditas, que já vinham de antes de Up (aliás i/o foi um nome provisório de Up), tanto que há material iniciado em 1995 no disco. Playing for time, uma das faixas, descende de Daddy long legs, cantada por Peter em sua turnê Back to front (2012-2014).
  • Todas as músicas foram lançadas como singles, todos eles chegando ao público a cada lua cheia – com mixes alternativos das mesmas faixas saindo a cada lua nova. O projeto inteiro de i/o, nas plataformas e em formato físico, tem as duas mixagens (bright-side, feita por Mark “Spike” Stent, e dark-side, de Tchad Blake) de cada música. Há ainda mais uma versão em Dolby Atmos, lançada apenas na Amazon e na Apple Music.
  • O título i/o relaciona-se tanto a “in” e “out” quanto ao nome de uma lua do planeta Júpiter.

“No princípio era o verbo”, conta um certo livro que, dizem por aí, é o mais vendido do mundo. O “princípio” de qualquer álbum de Peter Gabriel é um tanto mais intangível. Não basta apenas ter uma ideia, um estúdio e gente competente para levá-la adiante: é preciso visão (muita), paciência (idem) e tempo (mais ainda). O ex-vocalista do Genesis já pensava de maneira progressiva (e progressista) no auge da psicodelia, continuou olhando para a frente quando o no future virou moda e, vários anos depois, permanece tentando comunicar de maneira efetiva o que mais ninguém vê. Só faz isso com cada vez menos frequência, já que cada disco de Gabriel é um projeto diferente, que envolve mergulho em arquivos, retorno a ideias que foram deixadas de lado e questionamentos que valem por sessões exaustivas de análise.

Lançado com quase 20 anos de atraso (Gabriel já anunciava o nome I/O, em maiúsculas, como uma possível continuação de Up a ser lançada em 2004), o novo álbum do britânico podia ter entrado para o time das ideias anunciadas, revisadas, remexidas mas que nunca chegam a público. O cantor já falava daquilo que Luiz Melodia chamou de “nascimento, vida e morte/quem diria?” em Up – na verdade sempre falou, incluídos aí o clima de desapego de seu primeiro hit, Solsbury hill (1977) e o clássico romântico-existencialista-tecnológico Sledgehammer (hit de 1986, do álbum So).

Por sua vez, i/o parte de onde Up parou: é um testemunho de Gabriel sobre vida, morte, envelhecimento e equilíbrio do universo, em tom ambient característico (por acaso, Brian Eno está entre os colaboradores). Chega a comover em And still, canção de despedida em downtempo, com acompanhamento orquestral e batida levemente dançante. Na letra, Peter despede-se dos pais celebrando a vida e a continuidade, em versos como “e ainda assim os ventos quentes irão soprar/todos os rios fluirão/e ainda assim a grama verde crescerá/em cada lugar que eu escolho ir/eu carrego vocês dentro de mim”. Live and let live põe na roda o (controverso, ainda mais nos tempos de hoje) tema do perdão, citando Martin Luther King e Nelson Mandela.

De modo geral, Peter Gabriel age mais como um contista do que como um mero compositor, geralmente recorrendo a fábulas e a imagens religiosas – como na referência budista de Four kinds of horses, que fala também da combinação de terrorismo e religião, ou na constatação da passagem do tempo de Playing for time. Já o belo soul Olive tree (a melhor do disco, pondo em versos a conexão entre as pessoas), o art-pop Panopticom (que fala de um projeto do cantor envolvendo a criação de um banco de dados) e as programações de The court (essa, lembrando uma versão bem menos porradeira do Nine Inch Nails) ajudam igualmente a dar a cara do álbum, variando entre o pós-progressivo dos anos 1980 e 1990 e o som tecnológico que sempre marcou sua obra.

O pacote todo de i/o inclui os dois remixes, totalizando mais de duas horas de música (e cerca de 70 minutos nas doze faixas). O bright side soa mais pesado, mais aberto, “pra cima” enquanto o dark-side parece mais sujo – ouvi em diferentes tipos de fone e me lembrou um “digital” dos anos 1980, ou algo do tipo. Ouça naquele clima de imersão que anda em falta nos dias de hoje.

Nota: 9
Gravadora: Real World/EMI/Republic

Foto: Reprodução da capa do álbum (original de Nadav Kander).

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