Crítica
Ouvimos: John Cale, “POPtical illusion”
- POPtical illusion é o décimo-oitavo disco solo de John Cale, fundador do Velvet Underground (banda da qual acabou sendo saído após o líder Lou Reed mandar um “ou ele ou eu” para os colegas). É o quinto disco do cantor para o selo Double Six, ligado à gravadora londrina Domino.
- Num papo com The Guardian, Cale disse que o novo disco foi pautado pela pandemia, como já havia acontecido com o anterior, Mercy (2023), e que ele estava com muita raiva (“de coisas políticas, principalmente”) quando fez o disco. “Escrevi o disco com muito mais agressividade do que tive no passado recente, mas era um tipo diferente de agressão – um tipo de agressão romântica”, contou.
- O álbum foi produzido por ele com sua empresária Nita Scott. Ao contrário de Mercy, bastante colaborativo, dessa vez Cale tocou quase tudo sozinho, com colaborações pontuais de Nita (teclados e programações) e Dustin Boyer (guitarra).
O tal “passeio pelo lado selvagem” do qual Lou Reed falava, tem mais a ver com seu ex-colega de banda e “inimigo íntimo” John Cale. Lançando disco clássico atrás de disco clássico, Lou foi do rock mais básico e destrutivo ao puro ruído. John ficou com o lado aparentemente mais desafiador, indo das tentativas de abraçar o rock mais radiofônico, até canções mais sinfônicas e elaboradas. Em vários momentos, trabalhou com selos menores e teve menos atenção da mídia do que Reed.
Em alguns momentos, John e Lou pareciam se “encontrar”, ainda que separados. Foi o que aconteceu em discos sombrios e protopunks de Cale, como Fear (1974) e Slow dazzle (1975, em cuja capa o cantor usava roupas pretas, óculos escuros e se parecia não muito levemente com o rival). No disco novo, POPtical illusion, a “ilusão de ótica pop” de John Cale inclui mostrar que a música de vanguarda, na visão dele, se parece bem pouco com a ideia comum de rock, ou até de punk. O som de POPtical tem a ver até com pop adulto-contemporâneo, desde que aquilo possa ser mexido e remexido de forma a se tornar um pouco esquisito, como acontece em faixas como Davies and Wales, a quase progressiva Edge of reason e o sophisti-pop I’m angry, que às vezes soa como uma bossa nova fragmentada e produzida por Brian Eno.
O novo disco tem, principalmente, a visão de um dream pop às avessas, como se as camadas de teclados e programações (além dos vocais gravados como se viessem do fundo de uma caverna) servissem para dar uma ideia de paraíso perdido, de sonho que acabou. Tudo isso em meio a letras bem pessoais, como God made me do it (Don’t ask me again) e Calling you out, ou comentários políticos como os de Company commander (“os direitistas queimando suas bibliotecas/nos dando os benefícios e a dúvida”). Vem logo à mente a lembrança de que no entendimento de Cale, o disco que ele e Reed estavam fazendo em homenagem a Andy Warhol, Songs for Drella, deveria ter uma cara de réquiem, de elegia – porque é mais ou menos isso que dá para enxergar em POPtical, um disco “raivoso” feito em meio à pandemia.
No repertório de POPtical, acha-se também o punk eletrônico de Shark shark, o jazz pop sombrio de Funkball the brewster, o synthpop de How we see the light (que lembra a fase anos 1990/2000 de David Bowie) e, no encerramento, as meditativas Laughing in my sleep e There will be no river. O novo disco de Cale é extenso (mais de uma hora de duração) e termina deixando a sensação de que o baú do retiro pandêmico do músico ainda vai gerar mais surpresas.
Nota: 10
Gravadora: Domino/Double Six