Crítica
Ouvimos: David Gilmour, “Luck and strange”
Talvez a essa altura nem David Gilmour estivesse esperando que um disco novo seu trouxesse tantas mudanças à sua obra, mas Luck and strange fez exatamente isso. Tipo o que rola com o single Dark and velvet nights, que você pode tocar numa festa e dizer que é uma música perdida dos Arctic Monkeys (isso se ninguém reconhecer a voz). Ou com A single spark, música de tom sombrio e mais associável ao rock dos anos 1990 do que a qualquer coisa que lembre o Pink Floyd, banda cujo bonde Gilmour pegou já andando em 1968. E cujas direções futuras dependeriam dele e do líder Roger Waters – e das tensões entre ambos.
O que mais fica na memória de quem ouve o disco é o lado tranquilo e experimental do guitarrista. Tranquilo até demais para quem recentemente andou sendo envolvido em mais encrencas envolvendo o nome de sua ex banda (tipo essa e essa), e atraiu a raiva de fãs do grupo lançando o esquisito single Hey hey rise up em 2022. E experimental porque Gilmour decidiu aderir à velha fórmula de artista-experiente-contrata-produtor-mais-novo.
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O escolhido foi Charlie Andrew, um cara de 44 anos que começou a carreira como assistente de estúdio em Abbey Road, lugar onde o Pink Floyd gravou bastante. Por conta de seu antigo emprego, aliás, Andrew já prestou serviços ao ex-amigo e atual rival de Gilmour – seu nome aparece nos créditos do DVD The wall – Live in Berlin, de Roger Waters. Charlie juntou músicos bem experientes a gente mais nova, e jurou em entrevistas que não estava tentando fazer o disco soar como Pink Floyd ou como David Gilmour solo. Por sua vez, o guitarrista elogiou o produtor e disse que Andrew “não se intimida” com ele.
Bom, não custa lembrar que Gilmour, um dos melhores guitarristas de blues a não serem chamados de bluesman, tem um toque reconhecível a quilômetros de distância. Mas se Luck and strange tem algo a ver com o Pink Floyd, é porque muita coisa que aparece nas contribuições de Gilmour para o grupo ressurge aqui com outra cara, em músicas como a vinheta Black cat, a estelar e quase erudita Scattered e o blues da faixa-título.
De qualquer jeito, a essência do álbum surge mesmo é em músicas como a meditativa A single spark, a cavernosa e bela The piper’s call (marcada por percussão seca e uso de vibrafone), a balada grandiloquente e contemplativa Sings e o folk sombrio e simpático de Between two points, no qual Gilmour toca para sua filha Romany cantar – e sem querer, faz quase uma canção que Adriana Calcanhotto poderia acrescentar a seu repertório. E em outra música com a filha, a tranquilinha e pastoril Yes, I have ghosts.
No fim de Luck and strange, um presentinho pros fãs do Pink Floyd: o músico acrescentou uma versão de 14 minutos da faixa-título, gravada numa jam em seu celeiro em 2007, com a participação do saudoso tecladista do grupo, Richard Wright, que morreria no ano seguinte. Mas é um mimo pros que são fãs de verdade: acrescida de quase dez minutos em relação à faixa oficial, a versão “estendida” fica ligeiramente chatinha. E soa como aqueles bônus de relançamento que você só ouve uma vez na vida para nunca mais.
Nota: 8
Gravadora: Sony Music