Crítica
Ouvimos: David Bowie, “Rock and roll star!”
Uma coisa que só os grandes fãs de David Bowie souberam durante um bom tempo foi que ele já tinha feito uma boa parte de The rise and fall of Ziggy Stardust and The Spiders From Mars (1972) quando lançou Hunky dory (1971). Só que o novo contrato com a RCA o forçava a lançar um disco o quanto antes e ele precisava de bastante tempo para concluir Ziggy, o que causou a ordem trocada dos lançamentos. Quando Hunky saiu, numa entrevista de divulgação (da qual falamos aqui), Bowie acabou falando mais do que devia e soltou uma sinopse de seu próximo disco pro repórter.
Durante sua primeira viagem para os Estados Unidos, quando ainda era contratado da Mercury e estava divulgando The man who sold the world (1970), Bowie conheceu de perto uma série de novidades das quais ele só ouvia falar, e daí veio a gênese de Ziggy. Essa tour gerou há poucos anos uma controversa cinebiografia chamada Stardust, dirigida por Gabriel Range, da qual muita gente não gostou (vimos muitas qualidades nesse filme, por sinal).
Por mais que Ziggy, um rockstar que trazia uma mensagem de outro planeta, venha do espírito do seu tempo (androginia, filmes-catástrofe, “fim do mundo”, ressaca do sonho hippie, roqueiros megalomaníacos, mercado pop absolutamente inchado e demandado), havia sinais de que Bowie estava tentando gerar uma persona perfeita desde a época de seu primeiro hit, Space oddity (1969). Na verdade desde antes: em 1967, quando seu empresário Ken Pitt achou que seria uma ótima ideia um iniciante Bowie estrelar um filme (o surreal Love you till tuesday, que mal foi exibido), a produção já trazia o cantor fazendo um número de mímica, The mask, que parecia adiantar em alguns anos a história de Ziggy Stardust. O tema: um artista que não conseguia fazer com que seu público distinguisse ele mesmo de sua persona, e que acabava morto por sua própria máscara.
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Uma boa parte da trajetória de Bowie até que Ziggy Stardust finalmente virasse realidade pode ser ouvido agora numa caixa de 5 CDs (e um Blu-Ray) cujo conteúdo já está nas plataformas digitais. Rock’n roll star! faz o registro musical do cantor entre fevereiro de 1971 até a época em que o tape de Ziggy foi mandado para a fábrica. São demos, sessões de rádio da BBC, singles, faixas ao vivo, outtakes, somando 29 faixas inéditas. O caminho até Ziggy, e ao glam rock em estado puro, inclui demos que já eram amostras perfeitas de canções como Lady Stardust, Ziggy Stardust, Star e várias outras. Além da declaração de princípios So long 60s, gravada num quarto de hotel em fevereiro de 1971, e que aproveita a melodia do que se tornaria Moonage daydream para musicar um provocativo texto sobre a década que havia acabado (“adeus, década de 60/você morreu, se foi”).
Em várias dessas demos, Bowie é flagrado tentando reproduzir o jeito largadão com que Marc Bolan e Syd Barrett cantavam – a personalidade vocal que apareceria em seus discos pós-1971 ainda estava sendo desenvolvida. Há também trechos de gravações caseiras no Haddon Hall, casarão em que ele vivia com a então esposa Angie e ensaiava com seus músicos, e o material do Arnold Corns, uma tentativa pré-Ziggy que Bowie fez de lançar simultaneamente um popstar fake (seu amigo Freddie Burretti) e uma banda de mentirinha. Na demo original, Star era uma canção de piano absurdamente glam-pop, que poderia ter sido feita por Elton John. Soul love, por sua vez, surge em voz e violão, soando como uma mescla de Syd Barrett e Scott Walker – e tem sua beleza revelada, mais do que na gravação que todo mundo conhece.
As gravações da BBC vão do mais ou menos legal (os primeiros tapes feitos para o programa de John Peel têm som meio cagado, mas servem de registro) ao mais histórico, como as gravações bacanas feitas para o programa de Bob Harris. Ou o áudio da aparição clássica – e controversa – de Bowie no Top of the pops, em 6 de julho de 1972, tocando Starman. Algumas gravações raras originalmente publicadas como faixas bônus nas reedições dos discos de Bowie feitas em 1990 reaparecem, como The supermen e Holy holy (o take de Sweet head, sobra de Ziggy, originalmente pensado para entrar no disco, foi esquecido, mas a música aparece num remix). Outras faixas não aproveitadas do disco que costumavam circular em piratas, como Shadow man, Round and round (cover de Chuck Berry) e até então sumidaça It’s gonna rain again, também estão na caixa.
A caixa física de Rock and roll star! vem com livros, fotos raras e cópias de anotações pessoais de Bowie – um material que infelizmente não vai estar acessível para todo mundo (e que passa dos R$ 2 mil em lojas virtuais). Nas plataformas, já dá para ter uma ideia básica da viagem musical, encerrada com uma versão inicial acelerada de I can’t explain, do Who (que ele gravaria no disco de covers Pinups, de 1973) e com um mix instrumental de Moonage daydream, a declaração de popstar de Ziggy Stardust. Ouça lendo David Bowie e os anos 70, de Peter Doggett, com a história e o contexto de cada música de Bowie lançada na década.
Nota: 10 (você duvidava?)
Gravadora: Parlophone