Cinema
Os Deuses e os Mortos: sangue, política e psicodelia na tela
No Correio da Manhã do dia 3 de maio de 1970, Milton Nascimento vinha com algumas novidades. Uma delas era a de que estava animado com as trilhas sonoras para cinema que vinha compondo. Entre elas, a de um filme chamado Os deuses e os mortos, filmado em Illhéus (BA), com Ruy Guerra na direção, e no qual ele “tinha atacado de ator”. Aliás, atacado não é maneira de falar: o cantor de Travessia interpretou um pistoleiro chamado Dim Dum, que arrancava o olho do personagem principal do filme (O Homem sem Nome, interpretado por Othon Bastos).
Os deuses e os mortos era uma alegoria bastante violenta e psicodélica, dirigida pelo moçambicano Ruy doze anos após chegar no Brasil. As cenas de corpos jogados pelo chão, filmadas em um dos anos mais escrotos da ditadura militar, soam incrivelmente atuais nos dias de hoje. Mas a história se passava bem antes disso, nos anos 1930, na era da Bahia cacaueira. E mostrava a intromissão do tal Homem Sem Nome, um cara que havia sido baleado sete vezes, numa briga de dois coronéis do cacau.
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O filme propositalmente confunde presente, passado e futuro. Até que chega um momento em que rolam dúvidas sérias sobre qual situação é consequência de qual. O elenco ainda inclui nomes como Norma Benguell, Dina Sfat, Ítala Nandi e Nelson Xavier (além do sambista Monsueto Menezes, em outra participação especial e musical). Logo na abertura, em meio a imagens que lembram os filmes exibidos nos acid tests de San Francisco, Milton e o Som Imaginário tocam a soturna Tema dos deuses. Essa música apareceria no LP de estreia do Som Imaginário, naquele mesmo ano, e passaria para o repertório do cantor a partir do disco Milagre dos peixes, de 1973.
A novidade é que o filme, que andou sendo exibido em alguns festivais recentemente, está no YouTube.
Os deuses e os mortos é um filme bem violento, com vários banhos de sangue, pessoas mortas no chão e corpos pendurados nas árvores. Tanto que o próprio New York Times teria classificado a produção como um “western tropical”. Muito embora Milton tenha definido o filme (em 1977, numa conversa com a revista Ele ela) como “uma ópera popular, um filme musical”. Na real, é um filme bem cruel e bem verdadeiro. E que, mesmo em época de enorme censura, acabou chegando ao 20º Festival Internacional de Cinema de Berlim. Além de ter sido premiado em sete categorias no Festival de Brasília. Quem viu, entendeu a mensagem.
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Aliás, os bastidores de Os deuses e os mortos escondem histórias mais descontraídas do que se imagina, apesar da equipe volta e meia conviver com o medo. Justamente por causa da censura, Milton andava sem condições de trabalho. E aceitou em boa hora o convite para viajar com a equipe de Rui (junto com o parceiro Ronaldo Bastos, que ajudou na produção). O livro Os sonhos não envelhecem, de Marcio Borges, revela que na Bahia, Milton foi trancado num quarto pelo cineasta até que compusesse o Tema dos deuses (além de uma outra canção incidental). Também precisou roubar um pato para a equipe cozinhar. E, após fazer amizade com um dos figurantes, facilitou que a equipe recebesse um engradado de cachaça (ruim). Mas com a obrigação de que bebessem uma garrafa por dia (“ou o pau vai comer”).
Só que no fim dos trabalhos, Milton e Norma tiveram muita vontade de adotar um garoto pobre que trabalhava como engraxate e aparecia todos os dias nas filmagens. Só que os problemas com a ditadura, que culminaram na invasão da casa de Norma, acabaram com qualquer clima para adoção. Mas de volta ao Rio, Milton estreitaria laços também com o teatro, fazendo San Vicente com Fernando Brant para a peça Os convalescentes, de José Vicente.