Cinema
Jogaram The Trip, com Peter Fonda, inteiro no YouTube
Hoje parece incrível, mas The trip, filme psicodélico de longo alcance, não foi uma produção underground. Mais conhecido no Brasil como Viagem ao mundo da alucinação (apareceu assim nos cinemas nacionais, no fim dos anos 1960, e depois em lançamentos em VHS, já nos 1980), a produção de 1967 de Roger Corman, com Peter Fonda no papel principal, saiu pela American International Pictures, empresa que vinha conseguindo enorme sucesso com produções de terror e os célebres filmes da “turma da praia”, com Annette Funicello e Frankie Avalon.
Mais: The trip, com cenas loooongas que simulavam viagens de ácido, rendeu uns dez milhões de dólares de bilheteria e foi filmado por apenas US$ 100 mil. E foi um filme bastante popular, numa época em que o LSD virava prato cheio não só para festas animadas de roqueiros, como também para debates televisivos.
A novidade (bom, nem tanto, já que isso está rolando desde 2018) é que jogaram The trip na íntegra no YouTube. Pega ai antes que tirem do ar. No filme, o irmão de Jane Fonda faz o papel de Paul Groves, um executivo de TV em crise que resolve tomar LSD, auxiliado por um guru. Com ácido na mente, Groves começa a ter um monte de visões absurdas com sujeitos misteriosos a cavalo e até com sua ex-mulher, que o havia traído e abandonado.
Morto no último dia 16 de agosto, Peter Fonda era o cara certo para o papel. Ele já vinha usando ácido há alguns anos. Entre outros feitos na telona, tinha feito o papel principal de Anjos selvagens, por acaso também dirigido por Roger Corman, no qual interpretou um motociclista chamado Heavenly Blues. Não custa lembrar que Fonda vinha se tornando uma figura mais popular por seu inconformismo pessoal com o sistema do que por suas qualidades (reais e bastante elogiadas) como ator. Em 1966, foi inclusive preso na revolta hippie de Sunset Strip, em Hollywood.
Se você nunca escutou falar dessa história, vamos lá: a região de Sunset Strip, que representava uma parte do célebre Sunset Boulevard e era frequentada basicamente pela turma da contracultura, tinha virado alvo preferencial da administração da cidade, com medidas absurdas como toque de recolher e ameaças de prisão por vadiagem. Durante um protesto no clube Pandora’s Box, a polícia apareceu e levou Fonda, junto com vários outros (você talvez saiba, o hit For what it’s worth, do Buffalo Springfield, foi inspirado por esses protestos).
Peter Fonda também inspirou a frase “eu sei como é estar morto”, da música She said, she said, dos Beatles. Costumava dizer que chegou falando a frase para George Harrison numa festa. John Lennon, passando ali por perto, ouviu a frase e disse a Fonda: “E você está fazendo com que eu me sinta como se nunca tivesse nascido”. Surgia aí um novo hit. Bravo.
Mas segundo John Lennon (essa declaração apareceu no livro All we are saying, de David Sheff, e reapareceu outro dia no Los Angeles Times) a ocasião foi bem menos gloriosa do que parece. Os Beatles estavam em Los Angeles, numa pausa de turnê, numa festa animada com vários amigos (a turma dos Byrds entre eles) e garotas da Playboy, que rolava numa casa alugada pelo empresário Brian Epstein. Roger McGuinn e David Crosby, dos Byrds, apresentaram LSD pra George Harrison e John Lennon e rolou a primeira viagem de ácido boa da vida deles. Bom, nem tão boa assim: Harrison começou a pirar achando que ia morrer por causa do LSD.
De repente, Peter surge, tenta consolar Harrison e diz: “Eu sei como é estar morto”. A tal frase surgiu porque Fonda havia dado em si próprio um tiro acidental com uma arma, quando tinha dez anos, e seu coração havia parado de bater três vezes na mesa de operação – dai ele achou que isso seria uma maneira de animar o novo amigo. Lennon diz que Peter, mais alterado que uísque paraguaio, ainda repetiu a frase algumas vezes e já estava se tornando meio incômodo. Depois o beatle reconsiderou e usou a frase na música, só tomando o cuidado de transformar a personagem numa garota.
A história de The trip é contada em lugares importantes da cultura pop na Califórnia, como a região montanhosa de Big Sur e Laurel Canyon – este, um local onde se concentravam mansões de artistas como James Taylor, Frank Zappa, John Phillips (The Mamas & The Papas), Eagles, Joni Mitchell e vários outros. E a Sunset Strip, onde Paul Groves é visto perambulando em vários momentos. O filme ganhou roteiro de ninguém menos que Jack Nicholson. E pôs Peter (que faria Easy rider em 1969) definitivamente no mapa da cultura pop e da contracultura.
Por sinal, faltou falar da trilha sonora de The trip, feita pela banda Electric Flag, grupo de jazz-rock psicodélico de Chicago formado naquele mesmo ano de 1967. A trilha do filme seria o primeiro disco desse grupo, e sairia por um selo chamado Sidewalk, uma espécie de Som Livre da American International Pictures.
É isso. Agora vai lá ver o filme. 🙂