Cultura Pop

Jim Capaldi reeeditado e relembrado

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Muita gente não sabe disso, mas existe uma escola de música com o nome de um conhecido roqueiro inglês em Vicente de Carvalho, bairro da Zona Norte do Rio. O Centro Musical Jim Capaldi, criado pelo ex-baterista do Traffic, já ultrapassou uma década dando aulas de canto, cavaquinho, percussão, violão e prática de conjunto para crianças do entorno do bairro – lugares como Conjunto Residencial do Ipase, Morro do Juramento, Jardim do Saco, Morro do Trem, Jardim do Carmo e Morro da Fé. O centro é parte integrante  da Associação Beneficente São Martinho.

Jim Capaldi (1944-2005), muita gente deve saber, tinha relações reais com o Brasil: casou-se com uma carioca, Anna Capaldi, e morou no Brasil por alguns anos, a partir do fim da década de 1970. Além do Traffic, manteve uma carreira solo repleta de lançamentos, alguns deles gravados no Brasil. Chegou a manifestar preocupação com a situação do país em canções como Favella music, lançada em 1981.

Anna vem tocando o centro com a ajuda das filhas, Tabitha e Talullah (a caçula, nascida no Rio). A mais velha, Tabitha, também ajuda a tocar o legado do pai (que, aliás, faria 77 anos hoje, dia 2 de agosto de 2021). Ela recentemente percebeu que um dos discos mais significativos de Jim, Short cut draw blood, o terceiro, lançado originalmente pela Island em 1975, estava fora das plataformas digitais, apesar de já ter sido reeditado em CD. Lutou pelo relançamento digital do álbum, repleto de letras críticas em relação à maneira como os povos oprimidos sçao tratados. E cuja ficha técnica traz super musicos como Steve Winwood (teclados, guitarra, baixo), Remi Kabaka, Rebop Kwaku Baah (ambos percussão) e Chris Spedding (guitarra).

Tabitha também vem tocando projetos como o site de Jim (que estará devidamente reformado em setembro) e o instagram do artista. Trabalha também num filme sobre o Traffic e na volta aos palcos de um ex-colega de banda do pai, Steve Winwood, que retorna em turnê ao lado do Steely Dan em 2022. Batemos um papo com Tabitha sobre os novos projetos, sobre a escola de música (que precisa de doações – saiba mais aqui) e sobre a infância dela, cercada de música e de histórias envolvendo nomes como George Harrison e David Gilmour.

Nunca tinha escutado o Short cut draw blood e fiquei impressionado com as letras. A faixa-título poderia ter sido feita hoje. O disco não estava disponível no digital, então?

Não, lançamos agora. É essa a grande questão. A gente tem uma empresa, Freedom Songs, que meu pai criou, e administramos parte do catálogo dele, que é nosso. Tem certos discos que estão com majors, esse especificamente é da Island Records, uns outros com a Warner. Era um trabalho que a gente estava fazendo, mas digital a gente nunca prestou atenção. Minha mãe estava administrando esse catálogo havia muitos anos, depois que meu pai morreu em 2005 ela estava à frente disso. Era um trabalho mais de discos físicos, box sets, mas o digital foi esquecido. Recentemente eu estou tomando mais à frente.

Desde quando você cuida dessa parte?

Comecei ano passado, 2020. Eu sempre trabalhei com direito autoral, fiquei onze anos na BMI (sociedade arrecadadora). Trabalhava com gravadoras pequenas em Londres. Eu ajudava minha mãe nesse lado, vendo tudo. E descobri que esse disco nunca tinha sido lançado, foi um erro muito grande da gravadora. Entrei em contato com o novo chefe da Island, que eu havia conhecido quando trabalhava na indústria – é o Louis Bloom, o pai dele era integrante da banda 10cc (o Graham Gouldman). O Louis até pediu desculpas pelo disco não ter saído.

Você não quis nunca ser musicista?

Muita gente até perguntava isso, porque tendo pai músico, é uma influência. Tive um pai com ele, vivi uma vida como a que eu vivi, cercada de grandes músicos… Mas eu me sentiria muito intimidada. É muito difícil crescer nesse mundo. Conheço muita gente assim, até aqui no Brasil você tem filhos de músicos, como o Pedro Baby (filho de Baby do Brasil e Pepeu Gomes), mas é um caminho muito difícil, você tem que ser fantástico, está sempre sendo comparada com seu pai. Eu já entendi desde cedo que não iria para essa área.

Meu pai nem incentivou muito a mim e a minha irmã a entrar em nada na música. Era tipo “ah, vira médica, advogada” (risos). Bom, claro que se eu quisesse ser artista ele teria apoiado. Mas eu queria ficar perto da música e fui para a indústria.

Já andaram saindo box sets do Jim em vinil, certo?

Em 2019 saiu uma box set de vinil do Traffic, seis discos de vinil. Foi primeiro box do Traffic, até pela trilha dos Vingadores, que fez sucesso. Teve um box set em 2020, Dear Mr Fantasy, que foi um trabalho feito ao lado do selo Cherry Red. E um chamado Open your heart, com os discos em vinil, inclusive o Short cut draw blood. Em breve vão sair os vinis individualmente, que eu acho que são um produto bem legal. Estamos muito felizes com isso.

Aliás você deve ter crescido cercada de vinis…

Eu fui cercada de muita música, era algo até meio irritante: “Oh, seu pai é um músico famoso!”. Cresci entendendo música a fundo, estava cercada de música desde pequena, sempre ouvindo. Lembro do meu pai me levando pra ver o The Who, acho que foi um dos primeiros shows que vi na vida, no Hammersmith Apollo, começo dos anos 1970. Cresci em Henley-on-Thames, um lugar pequeno em Londres, e George Harrison morava do lado, a cinco minutos de lá. E ainda tinha David Gilmour que morava também do lado. Era uma área cheia de músicos. Eu ia para a escola, tinha amigos normais, mas voltava para casa e estavam o George Harrison ou o David Gilmour sentados à mesa lá em casa (risos). Era fantástico.

Vocês iam muito às casas deles?

Lembro de ir à casa do George Harrison porque ele e meu pai eram amigos próximos. Cresci ao lado do Deep Purple, Jon Lord e Ian Paice eram amigos do meu pai, bem próximos da minha família. Passávamos muito tempo juntos e havia muitas jam sessions. Você ia na casa do George e tinha uns cem ukeleles. Ele te dava um na porta e todo mundo tinha que tocar. Eu vivia nesse meio, via todo mundo tocando e era meio estranho para uma criança. Perguntavam “o que você fez no fim de semana com sua família?”. Falavam: “Ah, eu fui no parque com a minha mãe”. Eu respondia: “Ah, fiz uma jam com Ringo Starr e Ian Paice” (risos). Uma vez na casa do George, Ravi Shankar estava lá, eu tinha 16 anos. O Billy Preston estava no piano, sabe o Billy Preston?

Claro!

Pois é, eu estava sempre cercada de músicos e volta e meia me perguntavam se eu queria ser cantora, musicista. Não dá, isso é muito intimidador. Mas era uma vida incrível para se ter à minha volta. Eu tinha muita música em casa, alias eu tinha uma jukebox em casa. Meu pai era fanático por música, havia música no carro no caminho da escola, na jukebox quando acordávamos, ou no aparelho de som, ou no estúdio em casa. Ele estava sempre ouvindo alguma coisa, ou escrevendo alguma coisa. Ele era definitivamente um “old guy”, um cara que curtia coisas antigas.

Quando eu estava crescendo nos anos 1990, eu entrei na onda de techno, drum’n bass, era uma coisa da minha geração. Lembro que o primeiro selo no qual trabalhei foi uma gravadora de drum’n bass. Conversava com ele e ele “o que é isso? Isso é música de máquina?”. Acho que foi difícil para ele se adaptar, a gente teve muitas conversas sobre isso. Ele era muito apaixonado por soul music, Motown, Ray Charles, Sam Cooke, Otis Redding. Eu aprendi muito sobre música quando bem pequena, tinha muito vinil em casa, mas depois minha “coisa” passou ser o hip hop, quando eu tinha uns 13 anos. Depois na BMI tinha que trabalhar com outros selos, tinha que assinar com Bloc Party, Amy Winehouse, Arctic Monkeys, trabalhei com montes de pessoas, tinha que ver gigs. Mas vi Ray Charles, The Who, isso explodiu minha mente. Quando você é criança nem entende quem são esses artistas. Uma vez cheguei em casa e quem estava lá era o (tenista) John McEnroe, que era fã do meu pai. Meu pai era fã de esportes e no Brasil, se apaixonou por futebol.

Jim Capaldi e Tabitha

Você nasceu no Brasil?

Não, eu nasci em Londres e vim para o Brasil em 1978, 1979. Minha irmã nasceu aqui. Cheguei aqui com um ano de idade. E morei aqui até os seis anos. Voltamos para Londres acho que em 1984, e passei minha infância no Brasil. Meu pai já tinha vindo ao Brasil, ele conheceu minha mãe em Londres em 1975, quando ela foi para lá estudar inglês. Eles se conheceram e em três meses se casaram e ela já estava grávida de mim! (risos) Tenho lembranças legais do Brasil, da praia, e de quando voltei para a Inglaterra que foi um choque, por causa do frio. Mas durante o período em que vivemos aqui, ele estava sempre viajando muito, gravando outros discos. Estava sempre na estrada, longe, ficava um tempo sem vê-lo. Mas era minha vida. Eu chegava a pensar que queria que ele trabalhasse num banco ou algo do tipo. “Será que você não pode ter um emprego normal?”, eu falava.

Além de ser um grande baterista, ele também foi um cantor e um letrista habilidoso e informado – tanto que o disco fala de ecologia, preocupação com os povos indígenas… Isso era discutido em casa com vocês?

Ele era interessado nisso sim. Meus avós eram italianos, meu avô tocava acordeom, ambos eram músicos. Minha avó cantava. Eles se encontraram porque a família da minha avó tinha um circo. Eles faziam turnês, davam shows, então meu pai teve um background bem musical. Ele não chegou a fazer uma faculdade, aprendeu muito vivendo com o Traffic na estrada. Mas o primeiro instrumento que ele estudou, na verdade, foi piano. Meu pai estudou música justamente porque meus avós eram músicos.

Ele aprendeu piano antes e já era um cantor antes mesmo de ser baterista e trabalhar com o Traffic. E já estava compondo e cantando antes da banda. Se você lê as letras percebe o quanto meu pai era um letrista, ele escreveu todos os versos do Traffic. Ele tinha um envolvimento muito grande com a questão da ecologia, adorava ler a National Geographic, ler sobre antropologia, era fanático por isso. Ele tinha muitos livros, a educação dele veio dos livros, e o disco inteiro é uma expressão dos sentimentos dele. Há vários tipos de canções nesse disco, até mesmo canções sobre ecologia, mas há outras músicas. Ele queria sempre dizer alguma coisa, queria deixar um statement.

Bob Dylan era a maior bíblia dele, representava tudo o que ele queria dizer. Meu pai era brilhante como letrista. Tem muitas obras que ele escreveu que são bem pop. Mas tinha o lado dele de querer falar dos pontos mais importantes da vida.

E como vai a escola de música Jim Capaldi? Como está sendo nessa época de pandemia?

Então, hoje estamos passando um momento ruim. Eles precisaram reduzir equipes no Instituto São Martinho. Estamos enfrentando um furacão nesse momento, em que está tudo muito difícil para várias ONGs. Somos baseados em doações, isso caiu muito nesse último ano, e tivemos uma redução de 90% de equipe, praticamente. É algo enorme para a gente, estamos vendo como vamos sobreviver. Não temos apoio do governo, nossa parte é a escola de música que faz parte do São Martinho. A gente pessoalmente – a família Capaldi – doa todo ano para poder segurar e manter os custos, que são 50% da escola. E além disso, fazemos nosso trabalho, pedindo doação. Tivemos uma doação maravilhosa de instrumentos para a escola no ano passado, que foi emocionante para a gente, mas tá sendo muito difícil sim.

É uma pena, mas estamos tentando fazer o que dá, dentro das possibilidades. Tem muitas pessoas pedindo, e não é só o Brasil. Mas o Brasil está enfrentando um problema sério, de desemprego, falta de acesso à comida, uma loucura. É inacreditável pensar que pessoas que ganhavam com seu trabalho hoje nem têm isso. Gente que pagava as próprias contas e que nem consegue mais fazer isso hoje. As doações que pedimos nem são para a escola, são de comida para as famílias que frequentam a escola. Estamos buscando apoio com pessoas, lançando o novo site do meu pai. Tem site, instagram, muita coisa nova vindo aí. Enfim, como meu pai dizia, keep on tryin.

Voltando a Short cut, esse disco saiu pouco antes de você nascer. Você tinha uma relação de infância com ele? Como é a relação sua com a música do disco? 

Eu amo esse disco. Quando você cresce com música, estabelece um relacionamento com ela. Lembro do meu pai tocando muita música, e lembro muito desse disco de quando ia crescendo. Aliás me lembro de ouvi-lo pouco antes do meu pai morrer. Há muitas fases na nossa vida, mas esse disco em particular eu acho fenomenal. Ele também pe cheio de significado por causa daquela época da Inglaterra, aquele monte de greves acontecendo, Margaret Thatcher vindo aí, um tempo bem horroroso. E tem significado hoje também. Acho que esse disco tem que ser ouvido! O selo no começo estava com a ideia de apenas jogar nas plataformas, mas eu quis fazer uma campanha e eles nem sabiam que ia dar no que deu.

Ele foi gravado no Muscle Shoals Sound Studios (estúdio lendário no Alabama), a gravação faz com que ele seja um disco especial, além das pessoas que trabalharam nele. O disco é uma celebração. Meu pai teve uma leva fantástica de músicos no disco. Eu tenho a ideia de fazer vídeos para as músicas, um making of do disco. Acho que isso nunca nem foi feito. Tinha nomes como o Remi Kabaka, que foi um dos primeiros músicos africanos a tocar rock, e que tocou com todo mundo. Tenho falado bastante sobre isso com o filho dele, Remi Kabaka jr (produtor e músico, conhecido pelo trabalho com a banda virtual Gorillaz).

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