Cultura Pop
Erasmo Carlos bate um papo com a gente sobre música, futuro, passado e vacina
Há uma relação entre o nome do programa de TV Jovem Guarda e uma conhecida máxima do líder russo Vladimir Ilyich Ulianov (o popular Lênin, que escreveu que “o futuro pertence à jovem guarda” ou “o futuro do socialismo repousa nos ombros da jovem guarda”, dependendo da tradução). Essa história, um dos segredos mais mal guardados do rock nacional, havia surgido em algumas poucas publicações sobre música brasileira. Como por exemplo, o fascículo dedicado a Roberto e Erasmo Carlos da série Nova história da música popular brasileira, da Abril, nos anos 1970. Ou a histórica entrevista que Roberto Carlos deu para a Bizz em 1988. Mas ficou para trás com o tempo.
Entre a Revolução Russa e a revolução de Roberto e Erasmo, ainda houve outra jovem guarda – a da coluna de jornal de mesmo nome, assinada pelo futuro “rei da noite” Ricardo Amaral, que fazia bastante sucesso nos anos 1960. O publicitário Carlito Maia, um dos criadores do conceito da “jovem guarda” de Roberto, Erasmo e Wanderléa (e por sinal um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores) costumava, de qualquer jeito, citar a frase do líder comunista como inspiração para o nome do programa.
“O tempo é que me levou a descobrir que a coluna (do Ricardo Amaral) tirou da frase do Lênin, então o programa também tirou de lá. Foi um efeito dominó”, brinca Erasmo, que revisitou oito clássicos do movimento em seu novo disco, O futuro pertence à… Jovem Guarda: tem Ritmo da chuva (Demetrius), Nasci para chorar (versão de Dion & The Belmonts, feita por ele e gravada por Roberto), A volta (dele e de Roberto, gravada pelos Vips), O bom (de Eduardo Araújo). O disco é, mais do que um retorno ao passado, uma declaração de princípios e um olhar carinhoso para o futuro, como o próprio Erasmo conta nesse papo com o Pop Fantasma (foto: Guto Costa/Divulgação)
Como foi escolher o repertório e rearranjar as músicas?
A gente procurou fazer uma coisa contemporânea, como se as músicas tivessem sido gravadas agora. Porque quando se fala em Jovem Guarda, a pessoa remete logo ao órgão do Lafayette, aquele órgão marcante, aquelas músicas… E não, é só mudar a roupa da música que ela fica nova. A gente fez isso, procurou dar ênfase aos vocais… Para escolher o repertório, me reuni com os produtores, o Pupillo e o Marcus Preto, e o Leo Esteves – meu filho que coordena mais ou menos minha vida artística. Fomos cada um com seus preferências e depois fizemos o somatório. Escolhemos só sucessos, músicas marcantes com outros artistas, e que eu nunca tinha gravado. Foi fácil até escolher as oito músicas, valeram as mais votadas.
Você chegou a conviver com muitos desses artistas?
Claro. Com o Demetrius (de Ritmo da chuva) foi pouco, porque ele começou antes da Jovem Guarda. Com o Bobby de Carlo também foi pouco. O resto foi tudo durante a Jovem Guarda mesmo. Eu me dava bem com todo mundo, me dou até hoje. Não tenho nada contra ninguém, ninguém tem nada contra mim (risos).
Como foi emocionalmente pra você revisitar esses tempos gravando o disco?
Eu não fiz o disco com intenção de relembrar, na verdade. Fiz com intenção de projetar pro futuro. Porque eu quis homenagear a frase: “O futuro pertence à Jovem Guarda”. É uma frase da qual foi tirado o nome do programa. Era uma frase do Lenin. Eu vejo muito além dessa questão do programa de TV, vejo uma proposta, uma profecia, uma contestação, uma sugestão. Isso de “o futuro pertence à Jovem Guarda” é uma verdade.
Até porque a jovem guarda são as novas gerações, o bebê que tá nascendo agora. A gente não está cuidando direito deles. A gente tá negligenciando muito, não estamos dando prioridade à educação, á saúde. Eles precisam disso pra crescer fortes, sadios, espertos, para fazer um mundo melhor. Porque o mundo como tá hoje, tá uma merda! Ninguém tá satisfeito com o mundo atual, parece até que o ódio está vencendo. Mas é uma mentira isso. O amor é a arma mais poderosa que alguém já inventou.
Eu quis usar o amor das músicas da Jovem Guarda para perpetuar esse amor no futuro. Porque o amor das músicas da Jovem Guarda é um amor puro, inocente. Sabe? “Você é o tijolinho que faltava na minha construção” pode parecer brega, mas é de uma inocência muito bonita. Uma ingenuidade que você só encontra numa criança ou num cachorro.
As pessoas têm gostado do disco, eu fico acompanhando nas plataformas quem ouviu, quantos ouviram… Claro que não chega aos pés do funk, né? Que aí é trinta milhões de pessoas e tal. Nada disso, meu público é o que gosta de boa música, que se arrepia com um arranjo, pra quem fala diretamente com deus quando ouve música… Aí são poucas pessoas.
Como você lida com essa questão dos algoritmos, essa concorrência toda nas plataformas? Isso passa pela sua cabeça quando faz um disco novo?
Tô convivendo igual a você (risos), aprendendo as novidades. São 30 anos de novidade por dia, tem agora metaverso, bitcoin, você tem que aprender. Se você não aprender, você é ultrapassado, o progresso não perdoa ninguém. Tem que ter essa consciência, procuro sempre estar antenado. E fazendo coisas, eu tenho que ser notado, quero que o jovem por exemplo ouça uma coisa que eu estou fazendo agora. E se ele gostar, vai querer saber o que é que eu fiz. Se ele gostar, aí eu ganhei mais um fã. Meu processo de renovação existe a partir desse princípio: tenho que fazer agora pro jovem gostar e assumir o velho como novo.
Por acaso nos seus discos dos anos 80 sempre havia uma música infantil, como Meu bumerangue não quer mais voltar. Como era fazer esse tipo de música? Você sentia que estava fazendo novos fãs?
Então, sempre tive vários segmentos musicais: o romântico, com Roberto Carlos, tem o segmento romântico meu, sozinho, que é diferente do dele. Faço com ele e faço coisas sozinho. Tenho músicas de humor, de protesto, vários segmentos que fiz através dos tempos. A do Bumerangue eu classifico como uma música de humor, é um amor que foi embora, quem sabe ele volta. Gravei com a Xuxa até!
Voltando ao disco novo: na época vocês sabiam que a frase “o futuro pertence à Jovem Guarda” vinha de uma frase do Lênin? Porque tinha também a coluna do Ricardo Amaral, também chamada de Jovem guarda…
Tinha, tinha. Mas ninguém informava nada a gente, não, a gente nem sabia de nada. A gente dizia que era da coluna. O tempo é que me levou a descobrir que a coluna tirou da frase do Lênin, então o programa também tirou de lá. Foi um efeito dominó.
Como tá sendo voltar à estrada? Aliás como tá sua saúde?
Tá uma maravilha voltar a estrada. Fiquei doze dias na CTI por causa da covid e fiquei mal, bicho. Perdi voz, perdi respiração, equilíbrio. Pensei que nunca mais eu iria voltar, que iria acabar minha carreira. Depois foi uma correria pra voltar à forma. Fiz sessões de fonoaudiologia, acupuntura, fisioterapia. Muitos exercícios, e fui voltando à minha forma. Aí faltava a emoção do show, o aplauso das pessoas, testar fôlego. Surgiu uma oportunidade em Porto Alegre, o primeiro show da turnê. Fizemos o segundo em São Paulo, o terceiro no Rio. Agora estamos esperando a janela abrir de novo pra fazer Belo Horizonte. Agora considero que voltei legal, mas sem trocadilho com a música A volta (risos)…
Como bateu em você quando você da pandemia?
Fiquei sabendo, acho que ninguém soube de estalo. Primeiro falavam de um resfriado, depois de não sei o que, aí depois foi se agravando. Aí todo mundo foi sabendo. Já vi esse filme muitas vezes, porque vejo filme de ficção científica, então 30 jeitos diferentes do mundo acabar eu já conheço (risos). As pessoas que têm medo da própria imaginação é que são pegas de surpresa, e a surpresa tem um efeito muito maior. Eu tô acostumado com esses segmentos todos das histórias que eu leio e dos filmes que eu vejo.
Eu pergunto isso até porque essa coisa dos novos tempos, ou de coisas meio apocalípticas tá muito presente no seu trabalho. Você vê um disco como 1990 – Projeto salvaterra (1974), por exemplo…
É, minha cultura é de história em quadrinhos, eu não tenho cultura escolar. A vida que me ensinou as coisas. E eu tenho cultura de história em quadrinhos e cinema, minha cultura foi essa. Eu uso muito minha imaginação. Eu sempre falei, sempre protestei, falando em termos de humanidade, de civilização. Nunca protestei muito falando do Brasil, não. Meus pensamentos são sempre pro mundo, são as pessoas do mundo que estão erradas. Não são só as pessoas do Brasil, não.
Como você tá vendo essa onda dos artistas antivacina, como rolou com o Eric Clapton?
Ah, cada um tem sua cabeça. Não concordo não, aliás eu quero que ele se dane, tá cuidando da vida dele e eu da minha (risos). Eu me vacino, ele que faça o que ele quiser. Eu não obrigo as pessoas a fazerem as coisas, não. Só não quero que ele frequente minha casa! Sem estar vacinado, não dá. Todo mundo tem o direito de fazer o que quer e falar o que quer, desde que não agrida as outras pessoas. Quem toma uma posição dessas de não se vacinar, tem que assumir a proibição de não ir em certos lugares, porque as pessoas não querem uma pessoa que não foi vacinada no seu convívio.
Erasmo, esse ano faz 50 anos de um grande disco seu que é o Sonhos e memórias. Quais são suas lembranças desse disco?
Ah, é um disco muito bonito. É um disco que eu gosto muito. A crítica em geral gosta do Carlos, Erasmo (1970), mas eu gosto muito do Erasmo Carlos & Os Tremendões (1969)…
Que também é um grande disco, impressionante como não lembram tanto…
Foi o disco em que eu comecei minha mudança interior. Ela se apresentou já pronta no Carlos, Erasmo, mas começou lá. E o Sonhos e memórias é um disco que eu gosto muito, foi a última saudade que eu tive. Eu tenho uma saudade muito grande da minha infância, da minha adolescência. Botei tudo nesse disco. Aí nunca mais tive saudade de nada (risos), porque eu vivo mesmo é do presente e do futuro.
O que são aquelas falas entre as músicas do Sonhos e memórias? Aliás no fim de Preciso urgentemente encontrar um amigo tem um negócio que parece trailer de filme sobre a guerra do Vietnã…
Tem uma fala que é meu filho Gil Eduardo, ele que falou “o Natal tá chegando e eu quero dar presente pra todo mundo!” (antes de Vida antiga). A gente sacaneia ele até hoje por causa disso. Em Preciso urgentemente encontrar um amigo, aquilo é um locutor falando sobre a guerra do Vietnã. Essa música foi feita com essa intenção, era aquela época da Guerra do Vietnã, e era a época da peça de teatro Hair, no mundo inteiro a música Aquarius estava estourada e era aquela coisa dos hippies, paz e amor. E a necessidade de uma amizade, de um ombro amigo, era muito grande. Então essa música foi feita nessa época, assim como É preciso dar um jeito, meu amigo.
Esses detalhes aí só pessoas atentas como você percebem (wow!), porque 99% do público não está nem aí. Uma vez um diretor de gravadora falou pra mim e pra Roberto: “Vocês têm que parar de fazer essas músicas sobre ecologia, essas coisas de mato, de bicho”. A gente: “Não, a gente tem que falar, sim, porque é preciso, porque há animais entrando em extinção…”. E ele: “Não tem que falar porra nenhuma, cara, ninguém quer saber disso não, as pessoas só querem saber é de dançar. Por exemplo: você fizeram agora uma música chamada As baleias. Ninguém quer saber disso não. E quer saber do que mais? Baleia não compra disco!” (risos). O cara falou isso na nossa cara…
E hoje a gente tá vendo o quanto custa não falar de ecologia…
E a mentalidade é essa, né?