Cultura Pop
E os 50 anos de Harvest, do Neil Young?
No Brasil dos anos 1970 havia bastante interesse pela obra do canadense Neil Young. Pelo menos, o suficiente para garantir que boa parte de seus álbuns clássicos fossem lançados em vinil por aqui naquele período – até mesmo o duplo Journey through the past (1972), trilha sonora do filme dirigido por ele. Harvest, quarto disco de Young (cujo aniversário de 50 anos foi há poucos dias, em 1º de fevereiro), foi um dos álbuns que os fãs brasileiros conheceram quase em tempo real. Saiu por aqui em abril daquele ano, pela Philips, e foi bem recebido por algumas publicações nacionais.
Paulo Furtado de Mendonça, no Jornal do Brasil, afirmou que Young “consegue imprimir no seu canto uma sonoridade country sempre harmoniosa”. Já em maio de 1972, o jornalista e DJ Big Boy brincava em sua coluna do O Globo que Young havia ficado tão feliz com sucesso do álbum que havia resolvido deixar crescer a barba e o bigode, e tinha sido flagrado pelo fotógrafo do jornal “no Hospital Salgado Filho, aonde Neil esperava a vez para arrancar um dente”.
Lá fora, a crítica não era tão amável com Young quando seus primeiros álbuns saíram, não. O cantor e compositor, herdeiro do country, dos primeiros roqueiros e do romantismo pop dos anos 1950, encontrou algumas resenhas ruins quando saíram discos como a estreia Neil Young (1969), o hoje megaclássico After the gold rush (1971) e até mesmo Harvest. Tinha quem visse problema na voz de Young (sempre prestes a se despedaçar), ou na ingenuidade de algumas letras. Havia também quem brigasse com o clima tranquilo e a suposta simplicidade das melodias. Para os novos fãs de Neil isso era uma enorme bobagem: Harvest chegou a liderar o top 200 da Billboard por duas semanas.
Young era um sujeito do country-rock, era um grande músico e compositor, mas no universo agridoce e violeiro do começo dos anos 1970, era um cara que não tinha a exuberância musical de Joni Mitchell, nem a verborragia de Bob Dylan, nem a arquitetura pop de James Taylor. Não tinha nem mesmo (claro) o peso-pesadíssimo de um Led Zeppelin – muito embora o terceiro disco da banda britânica, Led Zeppelin III (1970) seja uma filial nunca assumida de Crosby, Stills, Nash & Young.
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No caso de Harvest, letras como Heart of gold e Out on the weekend, acima de tudo, falavam a verdade. Elas dialogavam com o ouvinte abordando sentimentos que muita gente não gosta de ter (a busca por um “coração de ouro”, lesação total após um pé na bunda, desesperos, paranoias, pedidos de ajuda). Falavam da exaustão da cidade grande, do cansaço pela busca dos holofotes, de um escapismo diferente, mais sustentável e movido a pequenas belezas e felicidades pessoais (como na esperançosa There’s a world). Havia também o estranho chamamento de Are you ready for the country?, em que não fica claro o que é o “país” da letra (talvez a temida convocação para a Guerra do Vietnã, ou as bizarras responsabilidades do dia a dia de trabalho das 9h às 17h, ou a vida na cidade grande).
Os versos, mais do que contar histórias com começo, meio e fim, jogavam cenas na cara do ouvinte. The needle and the damage done, música curta que falava do flagelo da heroína no rock, vale por um pequeno roteiro de cinema, abordando os dramas da vida de músico (“cheguei na cidade e perdi minha banda”), crises pessoais e morte (“cada junkie é um sol poente”).
Harvest trazia Neil Young acompanhado de feras de Nashville, que havia conhecido ao gravar um episódio do programa de TV de Johnny Cash. Os músicos que acompanharam Neil no disco novo acabaram sendo chamados de Stray Gators: Ben Keith (pedal steel), Tim Drummond (baixo), Kenny Buttrey (bateria), além do seu amigo Jack Nitzsche (guitarra, piano). A “outra” banda de Young era mais country e sossegada que o Crazy Horse, que o havia acompanhado em discos anteriores.
Em duas faixas, A man needs a maid e There’s a world, a Orquestra Sinfônica de Londres faz um redesenho no som de Neil, da mesma forma que cordas haviam no primeiro álbum do cantor, Neil Young, de 1968, igualmente com Nitzsche criando arranjos. Harvest, por sinal, trazia de volta Graham Nash, David Crosby e Stephen Stills fazendo backing vocals em algumas faixas – Crosby chegou a se juntar à turnê de Harvest nos últimos dias. E ainda acrescentava James Taylor e Linda Ronstadt fazendo backing vocals em Old man e Heart of gold.
A sequência da carreira de Neil Young pós-Harvest foi tomada por discos excelentes, muita imprevisibilidade, alguns abusos, problemas pessoais, ideias que não deram certo (o disco-ao-vivo-de-inéditas Time fades away, de 1973, deixou o artista tão puto da vida com seu próprio descuido, que só foi sair em CD em 2017). E também por alguns momentos em que o gosto do cantor coincidiu bastante com o do público, ou dos críticos. Seja como for, Neil sempre fez o que quis. E ao produzir música, vende o sonho da fidelidade total a si próprio para vários fãs espalhados pelo mundo, arrastando seguidores. Além dos grandes discos e dos memoráveis shows, esse é seu mais precioso legado.