Cultura Pop
E os 45 anos de Caras E Bocas, de Gal Costa?
Caras e bocas (1977) não é o “disco roqueiro” da Gal Costa, como teve gente que falou em textos publicados no dia da morte dela. Os três primeiros discos de Gal, mais o duplo ao vivo Gal a todo vapor (1971), é que ganham facilmente esse posto. Produzido por Perinho Albuquerque, o álbum foi gravado por Gal ao lado de um combinado de músicos que incluía Rubão Sabino (baixo), Robertinho Silva (bateria), Vinicius Cantuária (bateria e guitarra) e Rick Ferreira (o fiel escudeiro de Raul toca violão folk em Negro amor, versão de It’s all over now baby blue, de Bob Dylan, que tocou no rádio).
O sétimo álbum individual da cantora, que geralmente é esquecido quando fãs e (alguns) jornalistas lembram da faceta mais pop dela, pode ser incluído com folga na categoria de disco glam de Gal Costa. O clima invade as fotos da capa dupla, com Gal fazendo pose num espelho de camarim, e passa pela sonoridade do disco, unindo influências de soul, reggae e (vá lá) rock, e apontando para uma MPB mais dançante, ligada ao universo Black Rio.
O clima de Caras e bocas, vale dizer, surgiu de um momento especial no universo pop nacional, em que as Frenéticas (cujo primeiro disco também tinha uma foto de espelho de camarim) eram a maior sensação da música brasileira, Rita Lee ressurgia aos poucos, e nomes como Carlos Dafé e Cassiano faziam sucesso. Inclusive, o autor de Coleção e a autora de Mamãe natureza estavam na playlist particular de Gal na época do disco, ao lado de Stevie Wonder.
E não por acaso, Caras e bocas resgatava Me recuso, sobra de Rita e do Tutti-Frutti (que a própria Rita só gravaria nos anos 1980). E apresentava Marina Lima como compositora, com Meu doce amor, feita por ela ao lado do poeta e tradutor Duda Machado. Era a dos versos-assinatura “eu sempre sei por onde vou/e sempre quis tudo o que fiz/seja quem for/foi só porque eu quis eu fiz”, e era também uma das melhores interpretações de Gal no disco (e em praticamente toda a sua discografia).
Jorge Ben também estava lá, na primeira gravação de Minha estrela é do Oriente – que o autor gravaria no ano seguinte em sua estreia pela Som Livre, A banda do Zé Pretinho. Caetano, numa raríssima parceria com Maria Bethânia, colocava em versos a própria Gal na faixa título (“surge uma nota brilhante/de cristal transparente/minha cara invade a cena”), e era o autor do hit que puxava o disco, Tigresa. No disco, havia também acenos à Gal amadurecida que gravava songbooks e se preparava para fazer espetáculos menos explosivos (pelo menos se comparados à época de Divino maravilhoso) e mais exuberantes. Como nas duas versões em português de canções gravadas por Billie Holiday, Louca me chamam (versão de Crazy he calls me) e Solitude.
A crítica musical da época, com raras e honrosas exceções, não entendeu bem o disco novo de Gal. José Ramos Tinhorão, no Jornal do Brasil, comparou o álbum a Coração selvagem, disco de Belchior, e reclamou da “assimilação de um som universal, produzido por uma multinacional”. Acabou passando despercebido o lado existencial de Caras e bocas, um disco que basicamente falava sobre felicidade, amor e festa em tempos de ditadura. O ano de Caras e bocas foi complexo: críticos musicais brigavam com artistas consagrados, tachavam de alienados nomes como Caetano Veloso e Gilberto Gil, e pouca coisa sobrava no crivo. Para Gal, tudo era um pouco mais do que isso. “A arte é política quando propõe uma coisa nova, forte”, dizia ela a O Globo em 5 de novembro de 1977.