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Colônia: o holocausto brasileiro numa série de TV
Livremente inspirada no livro Holocausto brasileiro, de Daniela Arbex, e na história real de pessoas que passaram pelo Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais, a série Colônia (Canal Brasil, vai ao ar semanalmente a partir desta sexta, às 21h30) é pesada, e realista. Conta a história de Elisa (Fernanda Marques), que vai parar no hospício em 1971, internada pelo pai, por se recusar a casar com um rico fazendeiro de Minas.
Em seu decorrer, a série vai falando do dia a dia de outras figuras, o alcoólatra Raimundo (Bukassa Kabengele), a prostituta Valeska (Andréia Horta), o homossexual Gilberto (Arlindo Lopes) e dona Wanda (Rejane Faria). Em comum aos personagens, o fato de todos terem sido rejeitados por suas famílias, e internados lá. Como aconteceu com várias pessoas na vida real.
“Lendo o livro da Daniela e tomando mais contato com a história, fiquei muito impactado”, conta o diretor da série, André Ristum, que mostrou em Colônia, sem disfarces, a desumanidade no tratamento dos internos. Espaçoso o suficiente para ser considerado “a cidade dos loucos”, o Hospital Colônia de Barbacena havia sido fundado em 12 de outubro de 1903, e faz parte não apenas da história da psiquiatria do Brasil, como da literatura nacional, já que Guimarães Rosa escreveu sobre ele e chegou a batizar o trem que levava os internos de “trem de doido”. No local, os pacientes, amontoados, precisavam colher capim para se cobrir, eram torturados com eletrochoques e ficavam sem banho e comida.
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Detalhe: era comum que famílias mandassem para lá todo tipo de figura tida como degenerada. Gays, lésbicas, prostitutas, mulheres com senso de liderança e outras pessoas indesejadas pelas famílias eram enviadas e internadas sem diagnóstico. Presos políticos também eram presentes no dia a da do hospício.
“Tem um percentual de 80% dessas pessoas que foram levadas para lá sem ter nenhum problema psiquiátrico. O que impulsionou a ideia de contar essa história foram as questões humanas”, completa Ristum. “A Colônia era um lugar em que se colocava o que a sociedade brasileira intolerante não queria ver”, conta Augusto Madeira, que faz Juraci na série.
Os temas da série tocaram os próprios atores e suas vivências pessoais. “Na minha família há histórico de pessoas com doença mental. É algo que minha família nunca falou de forma natural. Quando recebi o convite para fazer a série, fui atrás para saber como funcionava o hospital. Uma história terrível”, conta Fernanda Marques. “Não existiu nenhuma Elisa, mas existiram várias meninas parecidas, que eram obrigadas a chegarem virgens ao casamento, e tinham casamento arranjado”.
Já Bukassa Kabenguele faz um paralelo da série com o dia a dia normal fora das quatro paredes. “A gente fala dos excluídos, há uma ponte direta. Um policial me disse que quem for roubar no Brasil deve roubar milhões. Não adianta roubar pouco, porque quem vai preso é sempre preto, puta e pobre”.
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Rejane Faria, que é justamente de Barbacena, conta que de início, quando escutou falar da história, achava tudo tão drástico que parecia algo vindo de um passado muito distante. “A cidade toda sabia que existia o hospital, onde era o local, mas eu não conhecia a história”, relata ela, explicando que depois descobriu até que sua bisavó materna havia sido internada lá. Sua personagem, Wanda, era uma empregada doméstica (“que trabalha na casa de pessoas brancas, servindo domesticamente e sexualmente os donos da casa”, diz), até que é internada. Na Colônia, ajuda os outros internos a passar pelas dificuldades. “Ela descobre uma maneira de viver, escolhe sobreviver, e diz a eles: ‘Calma. Aqui dentro, quanto mais calma, mais vida'”, afirma.
Andréia Horta, que é de Juiz de Fora, lembra que só foi tomar conhecimento do hospital quando deixou a cidade. “Por que não se fala sobre isso? Fiquei chocada como mineira, brasileira, artista, mulher. Era de fundamental importância contar mais sobre isso”, diz ela, cuja personagem, Valesca, é uma prostituta que se envolve com o prefeito de uma pequena cidade. “Vi muito essa abafamento em Minas, quando há alguém que tem doença mental na família. É melhor que ninguém comente, a pessoa vira o ‘meio louco'”.
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Ristum recorda que entre as grandes inspirações da série estavam as fotos tiradas pelo fotógrafo Luiz Alfredo no próprio hospital, e publicadas pela revista O Cruzeiro, em 1961, que deram ao local a fama de Holocausto brasileiro por mostrarem pacientes extremamente magros, desdentados e em péssimas condições. Outra referência foi o documentário Em nome da razão, dirigido no hospital por Helvécio Ratton em 1979.
“Essas fotos foram feitas bem antes de começar a luta antimanicomial, que só foi acontecer nos anos 1980. E nessa época, tinha uma coisa de ‘o cara é meio maluco, bota ele no trem de doido, manda pra Barbacena”, recorda. Por sinal, as gravações foram feitas em São Paulo, mas houve a ideia de fazer tudo lá mesmo no hospital. O projeto foi deixado de lado porque, além de interferir demasiadamente no dia a dia do local, ainda há pessoas que estão lá desde a época retratada na série (cuja realização traria lembranças ruins a elas).
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Colônia foi toda filmada em preto e branco, como resgate de época – e tem certo clima de terror e suspense. Os atores viveram um pouco como os personagens, passando frio e se cobrindo com capim – e também “sujaram” um pouco o visual (cabelo e dentes) para encarnarem os personagens.
“Era brutal olhar nos olhos das mulheres internadas lá, nas fotos. Tentar entender aquela desesperança”, conta Andréia. Rejane recorda que o contato entre os internos não era de abraços ou beijos, e que foi preciso aprender outras formas de demonstrar afeto para levar para a série. “Muitas vezes a delicadeza estava num olhar distante, mas que você tinha certeza que a pessoa estava com você. A gente tinha que descobrir como era, para chegar nesse lugar delicado de atuar”.
Já Arlindo Lopes teve que buscar um tom diferente para seu personagem Gilberto, um gay que é indicado para o hospital pelo pároco da sua cidade. “Ele gostava daquele lugar, talvez porque lá dentro ele fosse mais livre do que fora”, conta o ator, que se sentiu motivado a falar de homossexualidade na série após observar uma estatística que indicava aumento de 137% de homicídios contra pessoas LGBTQI+ em 2020.
“Como pode ter aumento ainda, no meio da pandemia? Me tocou bastante. A série tem a ver com esse momento de você se reconectar, criar resiliência, de se recriar, se encorajar. São mais de 500 mil mortos (de covid). Mesmo a gente, que é ator, está impossibilitado de fazer muita coisa. Temos que ter coragem”.