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Peraí, quem é Celso Zambel?

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Recentemente, o cantor e compositor paulistano Celso Zambel foi informado por um amigo de que era ídolo no Japão. “Ele me falou: ‘Seu disco tá custando trezentos dólares lá. Os caras piram ouvindo seu disco!'”, espanta-se ele.

Capa do disco “Espírito da noite”, de Celso Zambel (Reprodução da Internet)

Em sua casa no bairro de Interlagos, ele tem guardadas duas cópias de seu primeiro álbum, Espírito da noite, lançado sem muita repercussão pela Som Livre em 1979. Uma delas, tinha sido dada de presente por ele na época à sua mãe, já falecida. Caso resolva vender ambas no Mercado Livre, vai concorrer com vendedores que pedem até R$ 800 pelo mesmo álbum – um preço que surpreende quem nunca tinha escutado falar do disco.

Celso em 2019: o disco e seus instrumentos (Foto: Keithy Zambel)

Espírito da noite também é um disco surpreendente – a começar por ter sido lançado pela poderosa Som Livre. Celso diz ter recebido um borderô da gravadora informando que 5 mil discos tinham sido vendidos. A contracapa traz a inscrição “também em cassete”, comum em LPs na época – o que já serviria para animar fãs novatos das fitinhas.

https://www.youtube.com/watch?v=t7PelTcN3Uo

“Nunca nem vi fita desse disco”, diz o cantor. A capa, com uma foto de Celso em preto e branco, engana: dá a impressão de um disco lançado pelo selo indie britânico Factory em 1979/1980. Quem ouvir, vai conhecer um lançamento tardio da psicodelia nacional, que chegou às lojas quando os artistas que estourariam no pop dos anos 1980 já davam os primeiros passos.

Rei do lugar, uma das melhores músicas do álbum, dá a impressão de uma mescla de Lou Reed com Arnaldo Baptista. Se é que isso é possível.

Espírito da noite, meio sombria meio psicodélica, lembra um pouco o que aconteceria com o rock brasileiro nos anos 1980.

Por acaso, o disco termina com uma faixa chamada Mágica dos anos 60.

ANTES Espírito da noite surgiu numa época especialmente produtiva para Celso, que em 1979 já acumulava alguns anos de experiência (e certa fama, por vias tortas) no pop brasileiro. Desde o começo dos anos 1970, Celso sonhava em gravar discos próprios e mantinha uma banda chamada Mona, da qual havia participado uma multidão de músicos de São Paulo – entre eles, André Geraissati (guitarra) e Albino Infantozzi (bateria). André, por sinal, é o parceiro de Celso em todas as faixas de Espírito.

Se você leu a biografia A divina comédia dos Mutantes, de Carlos Calado, deve se lembrar que, no auge da fase virtuosística da banda, todos foram à Aclimação conferir o som de uma banda chamada Mescla. O livro conta que o grupo era liderado por um sujeito chamado Bartô, “o mais maluco da turma”, que “chegava a dissolver lascas de LSD direto nos olhos”.

“Eu toquei com o Bartô. Ele morreu ainda nos anos 70, era tecladista também. Ele era gênio e tocava muito, mas exagerou no LSD. Íamos a casa dele pra ensaiar e compor mas com o passar do tempo a coisa ficou pesada. Um dia fomos lá e ele tinha sido internado. Quando saiu da internação, toda vez que íamos a casa dele o pai, preocupado e com razão, nos seguia pela casa com medo que alguém desse algo pro filho dele”, conta Celso. “LSD era líquido e muita gente usava no colírio, porque era mais puro. A Mama Cass (The Mamas & The Papas) fazia isso. As drogas recreativas estavam na moda na época, mas não era a nossa. A gente preferia os enteógenos”, completa o cantor, hoje com 67 anos, “mas com aparência de 66”, brinca.

Em 1973, de contato em contato, Celso foi convidado por Arnaldo Baptista (“o Syd Barrett brasileiro”, classifica) para participar de um festival de novos artistas da Philips, que aconteceu no Estúdio Eldorado. “Era o verdadeiro Phono 73, com platéia convidada e com todos os novos artistas com potencial nacional e internacional de sucesso. Depois disso é que criaram o festival do Anhembi”, recorda o cantor (Armando Pittigliani e Roberto Menescal, que estavam por trás do Phono 73, foram procurados pelo POP FANTASMA mas dizem não terem lembranças desse evento inicial).

Celso acabou contratado pela Philips, mas (como pedia o espírito da época) sugeriram que ele gravasse apenas repertório em inglês, como fariam também nomes como Fábio Jr, Jessé e Christian. Começava aí uma longa saga de cantor-brasileiro-disfarçado-de-gringo, que rendeu vários lançamentos e alguns hits. E, mesmo que seu trabalho como compositor ficasse obscurecido, rolavam algumas vantagens.

“A grana era fantástica. Pô, com 20 anos eu ganhava uma grana respeitável. Eram quatro compactos simples por mês”, recorda. Contratado por gravadoras como Tapecar (que lançava o selo Stax no Brasil), Philips e Som Livre, Celso usou nomes como Tim Andrews, Detroit Blues Band e o mais famoso deles, Paul Jones. Com esse nome, Celso estourou em 1976 com Those shadows, sucesso em toda a América Latina. E tema de abertura do Jornal Hoje por alguns anos na década de 1970.

https://www.youtube.com/watch?v=fN7IVMM2WUo

Em 1977, mais um estouro: Try to feel good tocava direto na rádio paulistana Excelsior. Foi parar na novela Dona Xepa. Como a trama não ganhou trilha internacional, a música saiu em compactos da Som Livre e no LP Excelsior – A máquina do som vol. 6. A novidade é que a música aparecia nos rótulos dos discos creditada a Paul Jones e Andrew Geraissat. Celso Zambel e André Geraissati, enfim.

O PORTAL E O PORTÃO. A origem de Espírito da noite está na paixão de Celso por assuntos místicos. “Eu sempre gostei de discos que funcionam como portais. É uma coisa mais espiritualista, você acha que é só um disco, mas ele te abre as portas para outra dimensão. Parece papo de maluco, mas isso acontece. O Axis: Bold as love, do Jimi Hendrix Experience, é um portal. Uma ou outra faixa dos Beatles, também. O POP FANTASMA fez uma matéria sobre o A wizard, a true star, do Todd Rundgren, não fez? Esse disco também é um portal”, conta Celso.

“Na época, uma grande parte da juventude brasileira achava esse tipo de assunto interessante. A ideia conceitual do disco foi toda do Celso, as letras são dele. Eu sou um músico até superior a ele, mas naquele disco eu estava subordinado ao Celso. Trabalhar com ele era um grande prazer”, lembra André Geraissati, na época já tocando (e gravando discos) com o grupo D’Alma.

Entre 1978 e 1979, época da elaboração de Espírito da noite, Celso fazia jingles com o Mona. “Pediam à gente: ‘Ah, faz uma música aí que misture música de cowboy com discoteca’. A gente pensava: ‘Putz, que bosta’, mas fazia. Dava grana”, recorda. Também acumulava trabalhos em edição de imagens, já que tinha moviola em casa desde criança. Acabou trabalhando numa empresa dirigida por ninguém menos que Goulart de Andrade, que editava programas como o Globo Repórter, para a Globo. “Trabalhei até no Comando da madrugada, anos depois”, recorda.

Aquela vez em que erraram o nome do Celso nos créditos do “Comando da madrugada” (Reprodução)

Entre um trabalho e outro, em 1978, Celso montou uma banda – com integrantes do Mona e agregados – para trabalhar na trilha de uma peça chamada Portão dourado, escrita por Jurandyr Pereira com textos dele e de Hilda Hilst e Renato Haudy. O roteiro, datilografado, dava conta de que a peça era um “tragi-rock”, com a banda finalizada por Celso (cujo nome era Borgo Ni). Entre sombras e velas acesas no palco, Celso cantaria músicas com letras como “eu sei de uma nova maneira de viver/só me tocando de uma lança no meio do som/saca, é uma vida nova/vê se você se liga agora”.

Script da peça (Foto: Celso Zambel)

“Era um musical feito para encaixar essas músicas. Entramos em estúdio para fazer um disco que seria lançado juntamente com a peça”, conta. O disco do Borgo Ni, no entanto, acabou sendo abortado por uma razão bizarra: algum funcionário do estúdio apagou a fita. Celso não sabe até hoje direito o que aconteceu, mas o acontecimento foi crucial para que ele chamasse Geraissati num canto e começasse a elaborar um novo projeto.

Script da peça, com letra de música (Foto: Celso Zambel)

“Terminamos uma sessão de gravação numa quinta-feira, às 3h da manhã, e quando voltamos na segunda, a fita tinha apagado. Não rolou, mas aí eu iria arrumar o parceiro que eu quisesse, fazer o disco que eu quisesse. Não aguentava mais esse negócio de Paul Jones”, conta, rindo. “Eu gostava de ir no Chacrinha, dava pra me divertir. Mas o resto era um pé no saco”.

Pintura de Leila, mulher de Celso, que seria a capa do disco do Borgo Ni que não saiu (Foto: Celso Zambel)

SOM LIVRE. Espírito da noite surgiu por uma negociação com a Som Livre: Celso poderia gravar o que bem entendesse, desde que depois voltasse a gravar como Paul Jones e abastecer as trilhas de novelas.

“Quando o disco ficou pronto, ouvi de alguém da gravadora algo como: ‘E aí, quando vai rolar um ‘pauljonesinho’?”, diz Celso, que se recorda de ter assinado contrato com a Som Livre por intermédio de nomes como João Araújo (presidente da gravadora), Toninho Paladino (diretor de repertório internacional) e Otávio Augusto (produtor da gravadora, também cantor sob o pseudônimo de Pete Dunaway). No bate-bola com a gravadora, Celso se deu até bem demais: conseguiu até horas de estúdio para regravar, com a mesma equipe, o tal disco perdido do Borgo Ni.

O disco começou a ser gravado por ele e André em julho de 1978, no mitológico estúdio Vapor, no Jardim Paulista. “O Vapor parecia uma nave espacial. Tinha 16 canais, era concorrente direto do Level (estúdio da Som Livre). Em termos de equipamento, de sintetizadores, não havia nada igual”, lembra Celso. O Vapor era um desmembramento do estúdio Prova, montado por José Scatena, criador do estúdio Scatena, onde álbuns de artistas como Ronnie Von, Gilberto Gil e Mutantes tinham sido gravados.

“A Prova foi nos anos 70 a maior e melhor produtora de filmes, trilhas, jingles e spots do meio publicitário brasileiro, fornecedora de criação para as grandes agências de propaganda. As madrugadas livres eram ocupadas com a gravação de discos, com a locação do estúdio”, conta José Pedro Scatena, filho do velho Scatena, e sócio do Vapor ao lado de César Castanho, Ricardo Corte-Real, Rodolpho Grani e Manoel Barenbein. “Do Espírito da noite, lembro até hoje do diferencial da produção com uma equipe mínima e ao ineditismo da produção independente em um mercado de feras multinacionais. E do grande prazer que esse trabalho me proporcionou. Me senti um revolucionário. Até hoje tenho lampejos daquela produção em meus sonhos”, completa Scatena.

EM ESTÚDIO. Na elaboração de Espírito da noite, André ficou com guitarras, violões e alguns teclados – o cantor tocou sintetizadores, bateria e percussão. Apenas os dois músicos no estúdio. “O Celso chegava, fazia os sons com a boca. Às vezes falava: ‘Não, André, não é isso, você não pegou o barato’. Eu via o Celso tocando através do vidro do estúdio. Quando a gente atingia o ‘barato’, via a cara dele mudando. Era muito legal. Foi tudo feito sem compromisso”, recorda Geraissati. Celso lembra que as músicas iam sendo criadas lá mesmo.

Ficha de gravação do disco no Prova (Foto: Celso Zambel)

“Entramos sem nada composto. As músicas que a gente tocava com a banda não daria para a gente fazer. Lembro que o André falou: ‘Vamos nos aprofundar na história do ‘portal’, vamos fazer um negócio diferente. Começamos a fazer e saia um troço completamente diferente. Não dava nem para explicar muito, se explicar a gente vai pirar na batatinha. Nem eu nem ele esperávamos”, diz. A censura do governo militar, na lembrança de Celso, deixou a dupla compor em paz quase todo o tempo. “Só que em Notícia pra você eu precisei voltar no estúdio para regravar um verso que censuraram, era algo como ‘segura no gostoso’. E o disco já estava até prensado. Esse verso aparece nas primeiras edições”, recorda.

As encucações esotéricas da dupla entraram em canções psicodélicas como Divino Espírito Santo, Parada dos livres, o quase instrumental (cheio de vozes distorcidas no teclado) O mágico e a tensa Abmas. “O nome é samba ao contrário, a música tem um andamento de samba ao inverso”, conta Celso. “Quando entreguei o disco, ninguém na Som Livre entendeu nada”.

O tal projeto de “você grava o que quiser, desde que faça um disco em inglês” acabou não rolando. “Depois a gravadora conseguiu uma maneira de trazer fonogramas internacionais mais baratos para o Brasil e não fiz o disco como Paul Jones. Mas surpreendentemente fiz o Borgo Ni e a Som Livre me deu os direitos, além da fita”, conta Celso, surpreso até hoje com o que conseguiu.

André e Celso na contracapa do disco (Reprodução)

PELADOS NA BOLHA. Se Espírito da noite fosse lançado de acordo com a concepção original de Celso e André, das duas uma: ou a censura embarreiraria o disco, ou provocaria um barulho dos diabos nas lojas. A ideia original era que Celso e André aparecessem na capa numa foto em dupla exposição, dentro de uma bolha de plástico, pelados – alcançando em 1979 um efeito mais aproximado das cabriolas psicodélicas do Flaming Lips, que só surgiria na década seguinte. A foto chegou a ser produzida.

“A Som Livre censurou, claro. Dava para ver tudo”, brinca Celso. O disco deveria ter sido assinado em dupla por Celso e André – que, na contracapa, aparece usando uma camiseta do São Paulo Jazz Festival, em que tocaria com o D’Alma em 1980. O lançamento em dupla acabou não acontecendo e o LP virou solo, com a tal foto em preto e branco na capa, além de imagens de André e Celso na contracapa. “A Hilda Hilst me disse que não me reconheceu na capa, ‘não é você ali'”, conta Celso.

“Lembro que essas fotos da bolha foram tiradas numa casa no Brooklyn. O Celso é um puta editor de vídeo, a Leila (mulher de Celso) também. Ele arrumou essa bolha, daquelas que as crianças brincam dentro. Minha lembrança é que a bolha furou, talvez tenha ficado meio feio…”, recorda André. “Mas devia dar para ver tudo dentro”.

Mais complexo ainda: o encarte deveria trazer uma “bula” para ouvir o disco, que incluía alusões sutis a drogas. Celso mandou fazer um modelo do encarte, que submeteu ao amigo Toninho Paladino, na Som Livre. “Não era tão explícito, mas a Som Livre não gostou”, lembra. O disco se tornou quase um lançamento independente dentro da Som Livre, sem propaganda na Rede Globo, clipe no Fantástico (honraria que até bandas como Mutantes e Casa das Máquinas tiveram) ou música incluída em novelas.

DUPLA. Espírito da noite mal teve show de lançamento. Celso lembra que André propôs a ele que montassem uma “dupla sertaneja de rock” tocando pelo Brasil, mas que não curtiu a ideia. “Acho que ele ficou até chateado comigo porque não eu quis fazer. O André falou: ‘Eu toco muito e você arranha, você canta e eu não canto nada. Vamos montar uma dupla sertaneja-pop-psicodélica e sair pelo Brasil'”, brinca Celso, explicando que o conceito era bastante ousado para 1979: os dois comprariam um gravador de 4 canais e levariam as bases das músicas gravadas para os palcos. Detalhe: na época, mal existia sampler. “Ele não se interessou muito. Mas sabe que até hoje eu penso nisso? Se no Brasil tivessem pego o country americano…”, recorda André.

E DEPOIS? André passou a gravar e tocar com o trio D’Alma e, no fim dos anos 1980, lançou uma série de discos de violão solo pela Warner. Celso, por sua vez, tomou outros caminhos, fazendo edição de vídeo para emissoras de TV como Record e SBT, além de comerciais. Continuou tocando e voltou a gravar em 2015, lançando um EP caseiro, Nu, cru e malpassado.

Espírito da noite nunca saiu em CD ou qualquer outro formato mais recente, e não chegou nem sequer a se tornar um disco cult – caminho que álbuns de nomes como Ronnie Von e Arthur Verocai tomaram. Eduardo Lemos, da loja paranaense Melômano Discos, acredita que o disco esteja sendo hoje “supervalorizado” por certos lojistas, embora recentemente tenha vendido uma cópia por R$ 100. Ele recorda que já viu uma meia dúzia de cópias na loja.

“Acho que circulou bastante em distribuição de rádio. Não é um disco raro. O disco é muito bom, é uma obra muito boa, lembra um pouco de Walter Franco, psicodelia, guitarra fuzz… Acho que ele sairia por uns R$ 200, de repente. Mas ele custar quase mil reais é só especulação. Tem muito comerciante que trabalha assim”, conta o lojista.

O POP FANTASMA conheceu Espírito da noite por causa de um post do colecionador campista Gustavo Landim Soffiati. Que conseguiu o álbum por um preço insignificante, embora tenha visto um amigo vendendo o LP por R$ 450. “O disco parece ter tido uma tiragem abaixo das normais do selo. Não sei bem o que justifica o preço”, afirma.

Celso, enquanto acompanha uma pequena onda de interesse por seu disco de 1979, faz planos para outro lançamento. “Vou lançar o disco do Borgo Ni ainda esse ano, e em vinil”, explica o músico. “A qualidade é excelente e temos músicos legendários ali: tem o Fábio Gasparini (guitarrista do Magazine, de Kid Vinil), Paulo Soveral (baixo) e a cozinha dos irmãos Pedro e Albino Infantozzi. Além de mim e do André”, conta. É esperar.

Celso em 2019 (Foto: Keithy Zambel)

Agradecimentos: Fernando Carneiro de Campos, Silvio Atanes, João Pedro de Souza e Celso Zambel.

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