Cultura Pop
Black Moses, de Isaac Hayes, faz 50 anos!
“Moisés negro” virou um apelido para Isaac Hayes, da mesma forma que “Pimentinha” para Elis Regina ou “O cantor das multidões” para Orlando Silva. Não que ele gostasse disso: Issac passou a ser chamado assim por causa de Dino Woodward, executivo da gravadora Stax, que via no maestro e compositor um papel de liderança equivalente ao do personagem bíblico, e dizia a ele que sua música havia ajudado combatentes negros no Vietnã (“eles choram quando ouvem sua música”, afirmava o executivo).
Nem mesmo foi Hayes que batizou seu quinto disco, duplo, de Black Moses. Nome e capa vieram da gravadora, que bancou um lay out sensacional, com uma capa que se abria em formato de cruz, e que mostrava o cantor de pé, usando um manto que o deixava bem mais próximo do universo bíblico do que do mundo da música.
Black Moses faz 50 anos em novembro e mostra Isaac dando continuidade a uma trajetória de sucesso dentro da Stax, após marcos fantásticos como Hot buttered soul (1969) e a trilha do filme Shaft (também de 1971). Não era apenas uma fase de sucesso: era um período de muito trabalho, depois que a Stax perdeu força diante de selos como Motown e Atlantic. A gravadora forçou a barra para que o time de artistas contratados fizesse quase trinta álbuns, para repor a ausência de uma das maiores estrelas da casa (Otis Redding, morto em 1967).
Isaac não pretendia focar 100% no comercial, ao realizar álbuns: gostava de discos com músicas enormes e poucas faixas. Só que eram outros tempos: Hot buttered soul, com músicas enormes, repertório romântico (nem sempre composto por Isaac) e muitas partes faladas, virou febre e vendeu a rodo. Black Moses, um disco duplo, de repertório essencialmente amoroso, iria com certeza pelo mesmo caminho.
Apesar de Hayes ter feito sucesso em todo o mundo como autor de uma trilha sonora (extremamente plagiada, por sinal – até a novela da Rede Globo Bandeira 2 mandou para o ar um “tema de Shaft” particular, disfarçado de tema de abertura), Black Moses destacava mesmo eram seus trabalhos como cantor, produtor e arranjador. No disco, ele relia canções como Never can say goodbye (Jackson 5), (They long to be) Close to you (Carpenters), Need to belong to someone (Curtis Mayfield) e outras.
O disco apresentava também três versões do tema próprio Ike’s rap, que serviam como introduções de outras faixas. O Ike’s rap II é a faixa mais ouvida nas plataformas digitais, claro. Afinal, foi sampleado pelo Portishead (Glory box) e pelos Racionais MCs (na versão de Jorge da Capadócia, de Jorge Ben). Bizarro: Mano Brown, dos Racionais, precisou aturar repórteres (dos poucos que conseguiam entrevistá-lo) perguntando a ele sobre o fato de ele ter “sampleado o Portishead”.
O clima romântico de Black Moses não tinha nada a ver com a vida de Hayes em 1971. O maestro estava se divorciando e recordou ter chorado bastante durante as gravações. Alias, ele se recordava disso entre as poucas lembranças que guardava das sessões, que por sinal duraram longos oito meses. Mesmo assim (ou talvez por causa dos problemas amorosos), co-escreveu uma das músicas mais alegres e safadas do disco, Good love 69969.
Black Moses fez sucesso: galgou o Top 10 da parada americana e deu um Grammy para Isaac Hayes, e abriu espaço para mais discos bem sucedidos na Stax, além de outros que passaram batidos. Mas o relacionamento de Hayes com a Stax se tornou problemático e abusivo à medida que o cantor foi acumulando trabalhos para o selo.
Em 26 de junho de 1975, a revista Jet, dedicada ao público afro-americano, expunha a situação: Hayes tinha um contrato de 270 mil dólares por ano, mas considerava que a gravadora não o tratava com respeito, e queixava-se de discos ignorados pela Stax.
“A situação toda me custou muito”, disse ele, que entrou na justiça e gastou “uma bela quantia” para conseguir sua liberação, anos antes de artistas como Prince, XTC e George Michael entrarem em greve contra seus selos. Hayes não era só ele próprio: o maestro comandava um staff de 55 músicos que dependiam do salário que ele pagava, e qualquer atitude teria que ser muito bem pensada.
O músico montou o selo Hot Buttered Soul e avisou à Jet que contava com seu time para apagar traços da antiga imagem de “Moisés negro”. “Quero ser visto só como um entertainer. Essa imagem me limitava, as pessoas me viam como um salvador, e não como um ser humano”, dizia. A imagem que ficou não foi só a do líder do seu povo, mas a de um gênio musical, e Black Moses está aí para provar.