Cultura Pop
Astrud Gilberto: pioneirismo reconhecido bem depois da “Garota de Ipanema”
Não houve jornalista de cultura nos anos 2000/2010 (2020?) que em algum momento não tenha escutado do chefe: “Tenta achar a Astrud Gilberto, vê se ela topa dar uma entrevista!”. Isso geralmente acontecia nas datas comemorativas da bossa nova, ou quando João Gilberto fazia aniversário. Bom, essa era a parte 2, porque a parte 1 era: “Tenta achar o João Gilberto, faz amizade com o Otávio Terceiro (fiel escudeiro dele), liga pra Miúcha”.
A cantora baiana que popularizou Garota de Ipanema, e que morreu nesta segunda (5) de causas não-reveladas, estava aposentada (não-oficialmente), reclusa, e encontrá-la para um papo não era uma tarefa das mais fác… bom, pensando bem, era quase impossível. Seu último disco, Magya, saiu em 2002 por um selo pequeno e chamava a atenção por ser composto quase que inteiramente por material autoral, incluindo também uma releitura de The look of love, de Burt Bacharach e Hal David. Depois disso, ela anunciou que estava se retirando do mercado. Lá por 2010, chegou a sair um DVD muito bom dela aqui no Brasil, pelo selo Coqueiro Verde – mas gravado em 1985 no festival de jazz de Lugano, na Itália.
Uma matéria que ficou famosa e saiu no jornal The Independent no ano passado conta que a história de Astrud não foi nada fácil. Sua voz foi incluída por acaso na versão de Garota de Ipanema lançada no disco Getz/Gilberto (1963), dividido pelo jazzista Stan Getz e por (você deve saber) João Gilberto. Casada com João, ela estava na gravação, ofereceu-se para cantar a versão em inglês e a música, com a voz de Astrud, se tornou a segunda canção mais regravada do mundo. Mas se você for tentar achar algum crédito para ela na capa original do disco, pode esquecer: a capa destaca Tom Jobim, compositor de boa parte do disco e pianista/arranjador das sessões.
Getz, tido como um sujeito de caráter estranho até por alguns amigos, ganhou dinheiro com Getz/Gilberto o suficiente para comprar uma mansão cinematográfica. Passou a perna em João, dando-lhe bem menos dinheiro pelo disco do que ele merecia. Em 1964, numa carta ao amigo Tom Jobim (que nunca foi enviada, mas foi publicada várias vezes em livros), Vinicius de Moraes se disse contente com o sucesso da Garota nos Estados Unidos, perguntou “e Astrudinha, hein?” e disse: “Vamos ver se os intermediários deixam algum para nós”. Isso porque se tratava de uma correspondência entre os dois autores da música, os maiores interessados em ver aquilo dando dinheiro de verdade, além da fama internacional. Astrud, por sua vez, recebeu o cachê de tabela, US$ 120. E nada mais. Mesmo sendo a voz que internacionalizou a canção.
Astrud separou-se de João e começou uma carreira como integrante da banda de Stan Getz – a tal matéria do The Independent diz que se tratou de uma experiência aterrorizante, com maus-tratos, falta de grana e vários momentos em que ela não era informada de seus direitos, ou não tinha como focar na própria independência. O cenário mudou um pouco em 1965, quando Astrud foi contratada pelo selo Verve e iniciou sua discografia individual, a partir do The Astrud Gilberto album (1965).
O mercado queria Astrud cantando bossa nova, mas lá pelo fim dos anos 1960, ela estava cantando até pop barroco e sons pretensamente psicodélicos, em versões dos Beatles (In my life) e do Chicago (Begginings). No começo da onda bittersweet – de discos e artistas introvertidos e tristonhos – apareceu derramando uma lágrima na capa de I haven’t got anything better to do, um dos dois discos que lançou em 1969. No Brasil, os discos eram lançados, mas ninguém ligava para isso – Astrud nunca foi reconhecida por aqui.
No geral, tudo ali era bastante à frente de seu tempo, o que nem sempre garante compreensão imediata. Tanto que Astrud, discreta após os anos 1970 e mais identificada com o jazz-bossa depois de vários anos de carreira, foi redescoberta nos 1980 pela turma do pop sofisticado britânico: Tracey Thorn, do Everything But The Girl, sempre foi fã. George Michael cantou com ela. Style Council, Swing Out Sister e Matt Bianco só existem porque Astrud gravou Garota de Ipanema.
A ex-vocalista do Matt Bianco, Basia, já em carreira solo, foi além: gravou em 1987 Astrud, uma homenagem à cantora, com versos como “ninguém sabe de onde ela veio/a garota alta e bronzeada, jovem e adorável (…)/ eu sei que vou encontrá-la no sol de Copacabana/meditando/seu coração solitário não é novidade”. O recado chegou à homenageada: as duas se encontraram em 1988, e tem até uma foto do encontro, distribuída pela Epic, gravadora de Basia.
Basia and Astrud Gilberto, 1988 pic.twitter.com/gT45CxUMOf
— BasiaFans (@BasiaFans) December 28, 2021