Cultura Pop
Aorta: morte, psicodelia e ataque cardíaco (!) em disco
Tinha que acontecer: no fim dos anos 1960, a psicodelia estava deixando de ser uma propriedade da turma da paz e do amor. E virava filme de terror nas mãos de uma turma nova. Grupos como o Coven, que misturava lisergia e satanismo, Alice Cooper (que era uma banda bem diferente na época do conceitual-de-araque Pretties for you, o debute de 1969) e The Crazy World Of Arthur Brown eram mais filhos da viagem sem volta de Syd Barrett, ou do lado aterrador do Grateful Dead, do que da festa de Sgt Pepper’s dos Beatles. Para unir forças com essa rapaziada, em 1969 chegava às lojas esse disco aí.
CHICAGO. O Aorta era uma banda da região de Rockford, Illinois. Pela proximidade com a capital, seu primeiro disco foi lançado pela Columbia num saco de gatos de “novas bandas de Chicago”. Curiosamente, todos os integrantes da banda haviam passado por um grupo chamado Kal David and the Exceptions, cujo baixista era Peter Cetera – que, como se sabe, virou depois integrante do Chicago (o primeiro LP deles, Chicago Transit Authority, de 1969, saiu no mesmo pacote da Columbia).
SÓ NA HÓSTIA. A formação do primeiro disco do Aorta (Bobby Jones, Jim Donlinger, Jim Nyeholt e Billy Herman – baixo, voz/guitarra, guitarra/teclados/voz e bateria, respectivamente) veio após várias mudanças de formação e de estilo. Uma curiosidade bem estranha sobre o período pré-Aorta é que, ainda no período inicial, o ex-líder Kal David deixou os Exceptions. Sobrou uma formação com Donlinger, Nyeholt e Herman, mais Peter Cetera na voz e no baixo. Essa turma gravou um EP chamado Rock’n roll mass (isso mesmo, “missa rock´n roll”) com temas católicos vertidos para o rock.
BRUXARIA. Quem levou o Aorta para um caminho mais, er, perturbador foi um produtor chamado Bill Traut, um ex-saxofonista de jazz que virara executivo de gravadora. Bill assinou com o Aorta em 1967 para sua produtora Dunwich. Falamos aí em cima do Coven. Bill aparentemente tinha faro apurado para coisas bizarras. Ele também era empresário do Coven – foi o autor dos versos de Satanic Mass, missa negra de 13 minutos incluída no primeiro disco da banda, de 1969: Witchcraft destroys minds & reaps souls. E convenceu Donlinger a escrever quase todo o material do disco, além de tocar guitarra e fazer arranjos. Isso após dar a ele vários livros sobre ocultismo, e mandar que lesse tudo para escrever as letras. Uma das canções que Donlinger escreveu para o Coven se chamava… Black Sabbath.
“TÁS BRINCANDO?” Donlinger, cujo nome verdadeiro é James Vincent (e depois disso tudo, especializaria-se em jazz-fusion), foi, digamos, bem sincero quando escreveu sobre o Coven em seu livro de memórias Space traveler: A Musician’s odyssey. Disse que achou tudo aquilo uma papagaiada, uma imoralidade (“não contribuía em nada com o mundo”) e só topou porque ia ganhar uma grana. “A banda era liderada por uma vocalista loura, a Jinx Dawson. Eram jovens que por acaso vestiam-se de preto e diziam que eram bruxos de verdade. Jinx dizia que tinha nascido num Halloween, que por acaso caíra numa sexta-feira 13”, contou, zoando. Seja como for, assim que Donlinger leu todo o material levado por Traut, sentiu “uma força se apoderando de mim como nunca tinha acontecido antes” e escreveu todo o material do disco em poucas horas.
E O AORTA? O debute do Aorta, que ganhou edição em CD nos anos 1990, tá até no Spotify. O material do álbum, com mudanças aqui e ali, poderia dar num disco conceitual sobre morte, aporrinhações e problemas cardíacos. Tinha vinhetas instrumentais como Main vein (Veia principal, em várias partes), a psicodelia do quase hit Heart attack e de Catalyptic, e o rancor mortal (rapaz, isso entope as artérias…) de Sleep tight. O disco foi recebido sem muito entusiasmo pela crítica e conquistou apenas o 167º lugar nas paradas.
ANTES, em 1968, o Aorta tinha lançado um compactinho pela Atlantic com Shape of things to come (tema do filme americano Violência nas ruas, de 1968, que chegou a ser gravada pelos Ramones nos anos 1990) e uma música que sairia no primeiro disco, Strange.
E DEPOIS? Ainda teve um segundo disco do Aorta, Aorta 2 (1970), com mais uma mudança de formação. Traut pediu a Donlinger que desse uma reorganizada no grupo. O músico pôs seu irmão Tim na bateria, e convidou um novato chamado Michael Been para assumir baixo e vocais. A Columbia mandou a banda ir passear, e quem contratou o Aorta foi o Happy Tiger, selo ligado a uma companhia aérea (!) chamada Flying Tiger. O grupo voltava um pouco para o som da época dos Exceptions: rock influenciado por soul e gospel. Olha aí.
PULANDO A CERCA. Enquanto terminavam o segundo disco do Aorta, Been e Donlinger resolveram dar uma forcinha (mais uma vez a pedido de Traut) para uma banda que se desfazia, o grupo psicodélico americano H. P. Lovecraft. O grupo escrevia canções inspiradas no conhecido autor de livros de terror – cuja obra O horror de Dunwich, lançada em 2013, inspirara o nome da tal produtora de Traut. Na época, reorganizaram a vida com o nome reduzido para Lovecraft e gravaram com Been e Donlinger um disco chamado Valley of the moon (1970).
MUDANÇA DE RAMO. Em 1980, um bom tempo depois do Aorta e do Lovecraft, Michael Been podia ser visto à frente de uma banda pós-punk, o The Call. Deu certo: a banda teve hits como I don’t wanna, era vista como o futuro da música americana por gente como Peter Gabriel e usufruiu bastante da onda de canções remixadas, nos anos 1980. Reunido, o grupo andou fazendo shows no ano passado – sem Been, morto em 2010.