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Angélica Duarte estreia com “Hoje tem”
Angélica Duarte passou por vários caminhos pessoais e musicais antes de lançar seu disco de estreia, Hoje tem, que saiu há pouco. O álbum traz desde suas experiências como paulistana que vive no Rio há seis anos, mas também inclui percepções sobre o mundo feminino (Coisa bicho, Pakera fraka, Hoje tem). E sobre sensações que surgiram não apenas após a pandemia, como também após a morte de Marielle Franco, em 2018. Como em Música infantil para adultos, uma das melhores do disco, com participação de Letrux.
“Fiz essa música pensando na morte dela, na sensação de vazio e medo de morar no Rio. Mas hoje em dia essa música ganhou outro significado por causa da pandemia”, conta Angélica, que fez a canção um dia depois do assassinato. “Peguei o violão e estava com esse clima na minha cabeça, estava rolando manifestação na Candelária. Não fui à manifestação, estava frio, eu estava chateada e sozinha. Saíram letra e música juntas e a canção saiu com cara de música de criança. É como se a música tivesse uma melodia infantil, mas tivesse um tema para adultos. Ficou um tema de embalar, uma coisa que tem na música do Luiz Tatit, do André Abujamra”, diz ela, localizando mais ainda o tema no presente. “Quando a gente é criança, não está preocupado se Bolsonaro está estragando o Brasil ou não. Quando a gente é adulto, isso tudo vai minguando a gente, assim como o aumento das contas, etc”, diz.
O repertório do disco, aliás, foi quase todo feito por Angélica. A exceção foi Mais discreto, feita com Gabi Buarque, e que ganhou a participação de Juliana Linhares. “Já a conhecia do Iara Ira, do Pietá, e ela tinha acabado de lançar o primeiro disco, Nordeste ficção. Sempre fui fã dela desde a primeira vez em que a vi fazendo uma participação num show. Ela acabou fazendo o clipe, foi muito generosa”, conta. A outra participação do disco, Letrux, apareceu para adicionar um pouco mais de sarcasmo e ironia a já citada Música infantil para adultos. “Ela apareceu como uma chapeuzona vermelho no disco, já que tinha o trecho da música do Chapeuzinho Vermelho na música”, brinca Angélica.
O som do disco está num local entre MPB dos anos 1970 e 1980, rock e até jazz (que ela cantou em clubes em São Paulo). Mas entram outras coisas na receita. Angélica foi uma adolescente indie que amava Cat Power e Radiohead. “Isso pode ser percebido no disco”, conta, lembrando que músicas como Romance têm até link com Los Hermanos. Rita Lee e Roberto de Carvalho são citados como influências no lado mais pop do disco, e até num lado mais comportamental das letras.
“Nessa voracidade de falar que eu sou mulher, tenho sexualidade, tenho autonomia sobre meu corpo. Achei muito importante abrir o disco com esse discurso”, conta ela, referindo-se a Coisa bicho. “O disco tem Pakera fraka mas ela é uma paquera forte”, brinca. “De mostrar um lugar de autonomia da mulher, ‘tô te esperando, a gente tá falando a mesma língua’. Um acordo, não uma situação de submissão”.
Já a tensa Hoje tem, a faixa-título, fala em “a gente satisfaz o desejo do peão”. “Ela representa um ser mulher no Brasil. Isso acontece comigo, saio na rua e sou perseguida pelo tarado do Aterro do Flamengo. São coisas que é preciso você ser mulher para passar, não é uma questão de classe”, diz. “Muitas mulheres vivem essa realidade, é uma música ampla de sentido, de ter muitas interpretações. Precisava falar desses assuntos porque são urgentes” (o disco tem um faixa a faixa no YouTube, explicando as músicas).
Quando veio morar no Rio, Angélica estava querendo entrar em contato com a música brasileira e pesquisar mais o samba. Não chegou a se tornar uma sambista, mas conheceu muita coisa nova. “Eu queria vir morar aqui, falava: ‘Tenho que morar nessa cidade’. Em São Paulo eu conhecia o pessoal que tocava sambas do Rio na Vila Madalena. No Rio tive contato com o samba feito nas periferias, na Zona Sul, nas rodas de choro”, conta ela, recordando que o lado democrático das rodas de samba, na rua, influenciou bastante o clima de Hoje tem. Mas antes disso, ainda em São Paulo, veio a música de câmara, que ela estudou a partir da adolescência.
“Eu comecei a estudar canto aos 17 anos, queria estudar para cantar melhor minhas músicas. Tinha potencial mas não tinha técnica. Minha professora ficava incentivando que eu me tornasse cantora de música lírica. É uma carreira que precisa de muito empenho e eu não tinha essa vontade”, recorda ela, que já estudava guitarra e violão desde os 14 anos, mas só voltou a compor quando encerrou o relacionamento com a música de concerto. A volta à composição, por acaso, teve a ver com a vinda para o Rio. “Voltei a compor andando pela Rua do Catete, até falei: ‘Gente, tô compondo uma música depois de tantos anos…'”, brinca.