4 discos
4 discos: Rita Lee
Não temos o hábito de fazer obituário nem pretendemos passar a ter – a história de Rita Lee está sendo muito bem contada em vários jornais e revistas no dia de hoje, e foi relatada por ela, da maneira que ela achou mais apropriada, em duas biografias. Também há livros sobre os Mutantes (Discobiografia Mutante, de Chris Fuscaldo, e A divina comédia dos Mutantes, de Carlos Calado, são os que recomendamos) – e nós mesmos temos um podcast sobre a fase 1971-1972 da banda. E há um livro obrigatório sobre Rita, Rita Lee mora ao lado, escrito por Henrique Bartsch, e que funciona como “biografia pirata” da cantora, ao contar sua história da perspectiva de uma vizinha.
A melhor maneira de recordar Rita Lee (morta na noite desta segunda, dia 8, após lutar contra o câncer) é lembrar que ela viveu tudo o que quis, da maneira que quis, e deixou um legado incomparável em termos de música pop e rock brasileiro. Poucos artistas nacionais (Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, Kid Abelha e Skank estão nessa lista) trafegaram tão bem entre pop e rock, entre música brasileira e sons não-brasileiros, entre dignidade artística e entendimento do mercado, entre radicalismo (combustível do rock, inegavelmente) e compreensão do que é fazer música para uma certa entidade chamada todo mundo ouvir. Conseguir isso é tarefa para poucas pessoas, e para gente bastante preparada musicalmente e existencialmente.
Demos uma relembrada em quatro discos dela que basicamente fizeram nossa trilha sonora nos últimos tempos. Tem mais quatro, cinco, seis discos dela que todo mundo precisa ouvir hoje mesmo, mas vai aí um pouco do que vem inspirando o Pop Fantasma há alguns meses. A gente sempre escreveu ouvindo Rita Lee e vai continuar a fazer isso porque depois dela, nada foi o mesmo. E nunca mais voltará a ser o mesmo.
“ATRÁS DO PORTO TEM UMA CIDADE” (Rita Lee & Tutti Frutti, 1974, Philips). Quem quisesse ver a estileira de Rita e sua banda (ainda com Lucia Turnbull nos vocais, todos a bordo de roupas brilhantes e botas com saltos enormes) teria que abrir o encarte do disco – que trazia a ficha técnica anotada à mão, perdida no decorrer de um texto escrito por Rita numa folha de diário, no maior desleixo indie. A capa era uma imitação bacana da arte interna de Close to the edge, disco de 1972 do Yes – e vale citar que Rita, aparentemente, não queria ter mais nada a ver com o progressivismo dos Mutantes, o que poderia deixar alguns ouvintes confusos.
Era o álbum de Mamãe natureza, Ando jururu e da jazzística Yo no creo, pero, mas era um reposicionamento glam, noturno e bastante maldito de Rita no mercado, após a saída dos Mutantes. Valeria apenas como teste, e um teste em altíssimo volume, com grandes músicas – incluindo até uma vinheta sabbathiana, Tem uma cidade, fechando o disco. Mas Fruto proibido, lançado em 1975 pela Som Livre, é que representaria de fato a entrada da cantora no mainstream.
“BABILÔNIA” (Rita Lee & Tutti Frutti, 1978, Som Livre). O grupo que Rita liderou desde 1973 estava para se separar dela – Rita chegaria a fazer uma turnê acompanhada de um grupo brevíssimo chamado Cães e Gatos, cujo nome vinha dos atritos entre os integrantes. Roberto de Carvalho não apenas estava na nova formação do grupo (já havia aparecido em Refestança, show/disco de 1977 dividido com Gilberto Gil) como aparecia compondo Disco voador.
O som de Rita se tornava próximo das primeira fusões de rock e disco music, a ponto de “discotecas da Rita Lee” serem anunciadas em meio à turnê dela. Esse som surgia em Agora é moda, que foi parar na trilha de Dancin’ days. Babilônia também revelava sons inspirados em Paul McCartney e Fleetwood Mac (Disco voador, O futuro me absolve) e o lado “roqueiro” era regressivo como o som de David Bowie entre 1972 e 1974, ou o de bandas como Be Bop DeLuxe, Kiss e Sweet (Que loucura, Miss Brasil 2000, Jardins da Babilônia).
“RITA LEE” (1980, Som Livre). Creditado apenas a Rita, o primeiro disco dela nos anos 1980 (e o segundo sem uma banda fixa) já é um LP “do casal” Rita & Roberto, com fotos deles no encarte e seis das oito faixas feitas em dupla. Praticamente tudo desse disco tocou no rádio, algumas músicas bem mais do que outras. A rainha do rock virou, pós-anos 1980, a rainha do pop perfeito – e fez isso filtrada por tons de bolero lembrando Elis Regina (Caso sério) e belezas orquestrais difíceis de serem vistas em música pop no Brasil (Nem luxo, nem lixo).
Era também o disco de Baila comigo (que, segundo Rita, nasceu de um sonho e foi composta em cinco minutos), do disco-rock Bem me quer, de Ôrra meu (com Lulu Santos, creditado no encarte como Luiz Mauricio, no baixo), de Shangri-la (que vinha do repertório do show Cilibrinas do Éden, com Lucia Turnbull, e se chamava originalmente Bad trip) e de João Ninguém, cuja letra costuma ser interpretada tanto como piada cruel com João Araújo, presidente da Som Livre, como zoação com o então presidente da república, João Figueiredo. E em especial, era o álbum de Lança perfume, rock de rádio bastante referenciado em What a fool believes, do Doobie Brothers, feito de encomenda para a onda boogie nativa.
“BOMBOM” (Rita Lee & Roberto de Carvalho, 1983, Som Livre). O antepenúltimo disco de Rita e Roberto na Som Livre não era muito querido nem mesmo pela própria cantora. Foi gravado a toque de caixa, “num esquema muito impessoal, de linha de montagem”, em que Roberto, Rita e Max Pierre deixaram quase tudo a cargo de músicos de Los Angeles. O percussionista brasileiro Paulinho da Costa, que há anos trabalha nos Estados Unidos e já tocou com uma gama de artistas que vai de Michael Jackson a Offspring, é a rara exceção nacional num álbum cuja lista de músicos inclui dois integrantes do Toto (o guitarrista Steve Lukather e o baixista Mike Porcaro), além de Abraham Laboriel (baixo).
E aí que, mesmo com os defeitos que Rita via num disco que tem um hit fabuloso como Bobos da corte, vale ouvi-lo como uma bela passagem do “pop adulto” de Rita nos anos 1980 para um som mais próximo do rock nacional pós-Blitz. Bom bom teve venda proibida para menores de 18 anos por causa de Arrombou o cofre (uma paródia de sua própria Arrombou a festa citando nomes como Paulo Maluf, Golbery do Couto e Silva e Jânio Quadros) e Degustação (o poeminha infantil “querida, vamos chupar ferida” virou funk lembrando Zapp e Prince). E traz uma aproximação maior com a new wave brazuca em Fissura, Strip tease e Yoko Ono. Mas se tornou célebre mesmo por causa do metal farofa On the rocks e do pop gostosinho Desculpe o auê.