Crítica
Ouvimos: Daft Punk, “Random access memories (Drumless edition)”

- Random access memories (Drumless edition) é a versão sem batidas do álbum clássico do Daft Punk, lançado originalmente em 17 de maio de 2013. Em comemoração aos dez anos do disco, já saiu uma edição trazendo um disco extra contendo 35 minutos de conteúdo bônus, incluindo demos e outtakes inéditos. Dessa vez, é o álbum sem bateria e percussão.
- Diz o release do lançamento que tirar as baterias e percussões “traz uma qualidade atemporal ao álbum, dando aos ouvintes a capacidade de mergulhar mais fundo nas camadas de cada faixa”.
Random access memories, disco premiadíssimo do Daft Punk, como se não bastasse a qualidade dos arranjos e das composições, tinha as participações de dois superbateristas, Omar Hakin e John “JR” Robinson (Carlos Eduardo Lima, do site Célula Pop, fez questão de lembrar disso). Robinson, por exemplo, é nada menos que o batera do disco Off the wall, de Michael Jackson. Boa parte da graça de Random vinha dos desenhos rítmicos e do diálogo entre baixo, bateria e vocais – algo que faz com que Lose yourself to dance, hit do álbum, seja uma grande canção.
E aí vem a edição sem bateria de Random access memories, um projeto por si só bem instigante, o que não quer dizer que seja bom. O desenrolar da historia pode acabar dando problemas: afinal, será que os bateristas originais estão cientes disso? Já vi fãs da banda perguntando em fóruns se Omar e Robinson “merecem” isso, o que é um exagero. Cá entre nós, desde que ninguém seja passado para trás, é o Daft Punk fazendo o que bem entende de sua obra e, alegadamente, tornando-a uma tela musical para produtores e beatmakers criarem em cima. Mas a pergunta principal é: como é escutar um disco conhecido pelas suas batidas dançantes, só que totalmente desprovido de batidas?
Olha, vale como experiência, como curiosidade. E só isso. Daria para tecer a comparação negativa: imagine a introdução de Shellshock, faixa do Substance, do New Order, durando três minutos com morte súbita. Não é bem assim porque no caso da Drumless edition, são canções, com começo, meio e fim, ainda que descaracterizadas. Mas a sensação é a de escutar uma eterna introdução de uma faixa, só que a faixa não chega, a explosão não acontece – tudo termina abruptamente antes que se transforme em algo para dançar. Dá pra descobrir sensações novas em Motherboard (você vai prestar atenção nos arranjos de cordas e sopros, além dos efeitos especiais, como nunca prestou), Fragments of time, Within, nos hits Get lucky e Lose yourself to dance. Só é pouco.
A versão sem bateria de Random access memories foi definida pelo Pitchfork como “um álbum conceitual tão teoricamente puro que não precisava existir, uma piada sem piada”. Não é bem assim, não é pra levar a mal: é basicamente uma experiência que a dupla quis dividir com os fãs – e que, normal, não ficou tão boa quanto o original, nem era pra ficar. Para fazer jus à memória do grupo e do disco, que saia outro projeto realmente significativo em breve. E que a moda não pegue, principalmente.
Nota: 6
Gravadora: Columbia
Foto: Reprodução da capa do álbum
Crítica
Ouvimos: Juliana Hatfield, “Sings ELO”

- Vigésimo disco da cantora norte-americana Juliana Hatfield, Juliana Hatfield sings ELO é o terceiro álbum de covers da cantora, que já lançou Juliana Hatfield sings Olivia Newton-John (2018) e Sings The Police (2019). Traz dez versões do grupo britânico Electric Light Orchestra.
- Juliana disse que uma das inspirações para o disco foi um vídeo no qual Jeff Lynne, líder da ELO, toca as músicas do grupo no violão, acompanhado por um pianista. “Mas ele está tocando um monte de músicas dele, seus sucessos, ele está tocando violão e seu pianista está tocando e as músicas soam muito bem naquela atmosfera despojada. É apenas uma prova de quão bem escritas são as músicas e quão sólidas elas são, quão sólidas são as construções. É quando você sabe que uma música é uma boa música – se ela puder ser tocada por alguém no violão e tocada sozinha e soar bem”, contou aqui.
Do grupo hiperproduzido e progressivo do começo, a Electric Light Orchestra passou a ser vista como um grupo cafona com o passar dos anos – afinal, não se faz a trilha de uma extravagância como Xanadu à toa, não se escreve um rock bacanudo de rádio AM como Mr. Blue Sky sem irritar roquistas radicais. Ouvidos hoje, álbuns como o duplo Out of the blue (1977) são verdadeiros sobreviventes, com uma sonoridade que alude a Queen, Beatles, Paul McCartney solo, Elton John e até Pearl Jam e Foo Fighters (pergunte a Dave Grohl se ele não adoraria ter composto boa parte das mais vendidas e populares da ELO).
Alternando discos autorais com álbuns de covers, Juliana Hatfield é a pessoa indicada para revisitar o repertório de Jeff Lynne e seus amigos – até por ter feito já um disco dedicado ao repertório de uma ex-parceira do grupo, Olivia Newton-John, a musa country que depois virou musa da aeróbica e do pop. Juliana Hatfield sings ELO dá um ar estradeiro e independente a clássicos como Sweet is the night, Don’t bring me down e Strange magic, como se tivessem sido feitos por uma banda desconhecida agraciada com um talento divino para compor.
O som do álbum equilibra-se entre o country de FM e o blues-rock de FM, só que passados num filtro indie, com direito às baladas tristes Telephone line e Bluebird is dead, e a Secret messages, outrora um pop perfeitíssimo, virada em power pop estilo Big Star. O resultado do álbum sai bem menos sujo do que em Juliana Hatfield sings Olivia Newton John, disco no qual ela resgatou corajosamente até Xanadu e Physical. Fiquei curioso pra saber o que Juliana faria de Mr Blue Sky (não está no disco e faz falta) ou de canções da fase mais prog do grupo, como a curiosa 10538 overture (idem). De dez faixas da banda, ela fez um álbum para recordar, embalar e apresentar uma era de ouro da composição pop-rock.
Nota: 7,5
Gravadora: American Laundromat Records
Foto: Reprodução da capa do álbum.
Crítica
Ouvimos: Nation Of Language, “Strange disciple”

- O Nation Of Language veio do Brooklyn, em Nova York, e tem sete anos de carreira. A banda é formada por Ian Richard Devaney (vocal principal, guitarra, sintetizador, percussão), Aidan Noell (sintetizador, backing vocals) e Alex MacKay (baixo). Strange disciple é o terceiro álbum do trio e saiu pela PIAS (antiga Play It Again Sam Records).
- O grupo afirma que o tema do novo disco é “a paixão e como a realidade de uma pessoa pode ser distorcida por ela”. Too much, enough, uma das faixas, “nasceu de uma exaustão com o ciclo de notícias de 24 horas e a provocação de indignação que ele usa para deixar todo mundo permanentemente irritado”, diz o grupo.
- A banda foi uma recomendação do episódio do nosso podcast Pop Fantasma Documento sobre o New Order entre 1987 e 1988
Dois amigos (ambos jornalistas de música) conferiram o som da banda norte-americana de synth pop Nation Of Language recentemente em festivais fora do Brasil. Ambos voltaram para casa decepcionados: um deles irritou-se com o grupo no palco, o outro fez nariz torcido para o som, que considerou incapaz de encher grandes espaços.
Maldade, vai: o Nation tem composições bacanas e parece se inspirar em coisas mais bacanas ainda, como a levadinha synth-bossa lembrando Hiroshima mon amour, da primeira fase do Ultravox, em Too much, enough, uma das faixas mais legais desse Strange disciple. Ecos dos momentos mais pop de Depeche Mode e da fase menos pop Human League, cruzados, surgem em músicas como o hit Sole obsession e A new goodbye. Já a baladinha Swimming in the shallow sea é o momento Velvet Underground-Jesus & Mary Chain do álbum, e Stumbling still abre com baixaria a la Peter Hook e combinação de batida eletrônica e synth. Há quem veja, como o site Pitchfork, ecos de bandas mais recentes como Cut Copy, Bloc Party e Yeah Yeah Yeahs (honestamente, nem tanto).
A julgar pelo terceiro disco do trio, não há nada demais em ter bom gosto musical e expor isso em letras, melodias e arranjos – caso queira ser atirado via teletransporte numa noitada pós-punk na Europa oitentista, é o que esses novaiorquinos vão fazer com você sem pedir licença. Muitas referências fáceis de serem achadas pressupõem pouca originalidade, o que pode ser um problema. A magreza do som da banda em algumas faixas talvez (quem sabe) torne o Nation Of Language uma excelente opção para clubes, e demais espaços nos quais o som é mais importante do que a venda de um milhão de ingressos – e não há nada de mal nisso. Para saudosos do synth pop, é um disco que vai grudar bastante no ouvido.
Nota: 7,5
Gravadora: PIAS
Foto: Shervin Lainez/Divulgação
Crítica
Ouvimos: Cat Power, “Cat Power sings Dylan: The 1966 Royal Albert Hall Concert”

- Cat Power sings Dylan: The 1966 Royal Albert Hall Concert é o décimo-segundo disco – e primeiro álbum ao vivo – de Cat Power (nome artístico da cantora norte-americana Charlyn Marie “Chan” Marshall). O disco reproduz o show que Bob Dylan deu em 17 de maio de 1966 no Free Trade Hall, em Manchester, Inglaterra – a apresentação mais importante de uma tour na qual ele foi vaiado por mudar do som acústico para o elétrico.
- Por causa de um lançamento em disco pirata com título errado (aliás um dos primeiros bootlegs de todo os tempos), o show de Dylan passou para a história como tendo sido dado no Royal Albert Hall. A cantora decidiu regravar o repertório do show de Dylan em Manchester em disco, mas manteve o título histórico.
- O show de Cat foi gravado em 5 de novembro de 2022, no Royal Albert Hall, em Londres. Ao lado dela no momento mais ruidoso do show, o guitarrista Arsun Sorrenti, o baixista Erik Paparozzi, os multi-instrumentistas Aaron Embry (harmônica, piano) e Jordan Summers (órgão, Wurlitzer) e o baterista Josh Adams. A produção do disco foi feita por Andrew Slater ao lado de Cat.
- “Eu tinha e ainda tenho muito respeito pelo homem que criou tantas músicas que ajudaram a desenvolver o pensamento consciente em milhões de pessoas, ajudaram a moldar a maneira como elas veem o mundo”, diz Cat Power. “Então, mesmo que minhas mãos estivessem tremendo tanto que eu tive que mantê-las nos bolsos, eu senti uma dignidade real por mim mesma. Pareceu uma verdadeira honra para mim estar ali”.
Chan Marshall, a popular Cat Power, é uma mulher de coragem. Muita coragem, eu diria: não se encara o repertório de Bob Dylan sem uma boa dose de autoconfiança e compromisso extremado com a verdade. Mesmo que seja uma verdade que só diga respeito a você, e a mais ninguém. A não ser, claro, que seu negócio seja apenas tirar uma onda com um repertório clássico ou prestar uma homenagem qualquer a Dylan – e vale lembrar que a obra do cantor vem sendo interpretada há anos, inclusive aqui no Brasil (e em português) com resultados que vão do bom ao totalmente desastroso.
- Um pouco mais sobre o disco de Cat Power e sobre o show original de Dylan aqui
No caso de Cat Power sings Dylan: The 1966 Royal Albert Hall Concert, a coisa fica bem mais complicada: não é apenas um repertório. É um show histórico, uma época, uma referência histórica que soa quase como reproduzir a descoberta do Brasil. Mais que isso: o show de Dylan foi uma mudança de rota que passou a guiar todo o universo da música a partir de então. O próprio embate entre tropicalistas cabeludos e MPBistas herdeiros da bossa, que rolou por aqui nos anos 1960 (com direito a “passeata contra a guitarra elétrica”), vem desse desgosto com a eletrificação do som do cantor norte-americano.
No caso, o direito de errar passa longe: Cat correria o risco de soar falsa, cair na caricatura, cair na reprodução sem graça. Havia o risco de tentar “revolucionar” a obra de Dylan com arranjos diferentes – coisa que felizmente ela não fez. Cat resolveu o dilema dando ao repertório um tratamento reverencial, mas que a coloca como uma boa intérprete do cantor. Ao contrário do vocal bonito apesar de esganiçado de Dylan, a voz dela traz um clima de aconchego quase comparável ao de Joni Mitchell. E e dá credibilidade (digamos assim) a clássicos como Visions of Johanna, She belongs to me, Tell me momma, It’s all over now baby blue, Just like a woman e outros.
O tratamento dado às faixas passa também pela sua banda, e pelo fato do show original de Dylan ser fielmente reproduzido. Até mesmo na passagem do acústico para o elétrico, e com direito a um maluco gritando “Judas!” da plateia em Ballad of a thin man (Cat responde com um “Jesus!”, como se dissesse “não é possível que alguém fez isso”). Nesse lance de regravar e homenagear, tudo é possível mas nem tudo convém. De qualquer jeito, Cat, que tem experiência com o assunto – já é o quarto álbum de covers feito por ela – conseguiu contextualizar o show de Dylan com um disco bonito.
Nota: 8
Gravadora: Domino
Foto: Reprodução da capa do álbum.
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